Wednesday, 15 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Manuel Pinto

‘Uma trapalhada mediática de que o JN também sai chamuscado. Assim se pode classificar o caso hoje em análise. E que diz respeito ao modo como este jornal tratou uma notícia acerca de alegadas investigações acerca de um despacho que deu luz verde ao projecto conhecido como ‘Nova Setúbal’, assinado pelo primeiro-ministro, José Sócrates, quando foi ministro do Ambiente.

A matéria foi manchete no ‘Público’. A ‘PJ investiga empreendimento viabilizado por Sócrates e Capoulas’, anunciou aquele jornal, no passado dia 14. Talvez por o assunto meter também o abate de sobreiros, não faltou quem visse no momento escolhido para a publicação do caso uma forma de criar um foco de distracção relativamente ao escândalo, que eclodira uns dias antes, envolvendo membros do Governo derrotado nas eleições legislativas passadas. Mas não é esse ponto que importa analisar. Anotemos apenas que o ‘Público’ concluía que Sócrates estava a ser investigado por eventual tráfico de influências, e que dessa investigação não havia ainda conclusões.

No mesmo dia, a Directoria da Polícia Judiciária publica um comunicado sobre o assunto, que foi difundido pela Lusa com o seguinte título ‘PJ sem provas contra Sócrates no caso ´Nova Setúbal’. Nele se esclarece que ‘não existem quaisquer elementos que permitam concluir que, subjacente ao despacho conjunto que declarou a utilidade pública do projecto em causa, esteja a prática de um crime de tráfico de influência imputável aos visados na notícia’. Pouco depois de ter difundido esta informação, a mesma agência distribuiu uma correcção na qual mantinha o corpo da notícia, mas alterava o seu título para ‘PJ nega investigação a Sócrates no caso ´Nova Setúbal’. Por outras palavras, a Lusa passava a afirmar que nem sequer havia ou tinha havido investigação, quando os elementos difundidos não suportavam tal mudança.

No dia seguinte, ou seja, no domingo passado, o ‘Jornal de Notícias’ publicou uma notícia em que, além de referir a inexistência de elementos comprometedores para Sócrates, nega também a existência de uma investigação sobre o assunto. O título da peça não pode ser mais explícito e peremptório ‘PJ nega processo contra Sócrates’.

Alertado por uma nota do director do ‘Público’, vinda a lume na segunda-feira, assim como pela disparidade de interpretações sobre o comunicado da PJ, que se podiam ler nos vários jornais que se referiram ao assunto, não pude deixar de constatar que ou o JN era possuidor de outras informações, para poder garantir o que escreveu ou, como se diz na gíria, tinha metido água.

Contactada pelo provedor, a editora de Política deste jornal referiu que o jornal seguiu, na redacção da notícia, os textos da Lusa, os quais a levaram a concluir que ‘já não está a decorrer qualquer investigação, uma vez que teria sido concluído não haver crime de tráfico de influências’. A este propósito, o provedor quis saber se não provocou estranheza na Redacção do JN o facto de a Lusa ter corrigido o título da sua peça sem que a matéria noticiada se tivesse alterado. Ao que a editora respondeu ‘Confesso que, talvez por um momento de ingenuidade, pouco consentâneo com o exercício desta profissão, não valorizei a tal alteração do título da notícia da Lusa. Admito, agora, que talvez devesse ter dado conta aos leitores dessa modificação (?)’.

Visto que o comunicado da Polícia Judiciária não foi recebido no JN – provavelmente foi enviado apenas para a agência de notícias –, procurei obter da própria PJ o respectivo texto integral, tendo verificado que ele não diz mais nada de substantivo do que a passagem atrás citada. De onde, e salvo melhor opinião, se concluem pelo menos três coisas em primeiro lugar, para a PJ dizer que não há indícios da prática de um crime é porque existe ou existiu investigação; em segundo lugar, a agência Lusa divulgou algo que não consta do comunicado da PJ, isto é, que esta Polícia ‘nega investigação a Sócrates’ (com a agravante de esta inverdade resultar de um acto deliberado de ‘correcção’ da notícia inicial); em terceiro lugar, o JN, ao seguir a informação difundida pela Lusa, induziu, ainda que involuntariamente, os seus leitores em erro.

Num caso destes, o jornal tinha de confiar no profissionalismo da agência, uma vez que não pôde consultar por si mesmo o comunicado policial. Mas facilitou ao ter tomado como não problemático um comportamento concreto da agência que, até prova em contrário, deve ser qualificado como anti-profissional. Salva-se, no meio de tudo isto, a lisura com que a editora de Política assumiu esse erro. O procedimento da Lusa também deveria ter sido motivo de notícia.

O papel das agências noticiosas no jornalismo

As agências noticiosas constituem uma via privilegiada de fornecimento de notícias aos media. Há quem lhes chame os ‘grossistas da informação’, na medida em que os seus primeiros clientes são os meios de comunicação social.

No plano internacional, destacam-se agências como a Reuters e a Associated Press, nascidas ambas em meados do século XIX, a primeira na Europa e a segunda nos Estados Unidos da América. A Reuters ainda chegou a funcionar, nos primeiros tempos de existência, com a ajuda de pombos-correio. Mas foi o desenvolvimento das redes de telégrafo que contribuiu para a expansão deste novo tipo de instituições de distribuição noticiosa. O telex constituiu para elas a grande ferramenta de comunicação, impondo-se nos anos 20 do século passado e vigorando praticamente até à difusão da Internet, nos anos 90.

Há agências generalistas e especializadas, umas mais vocacionadas para a informação escrita e outras para o audiovisual e para a Internet, mas todas têm em comum o facto de terem uma rede capilar de recolha e tratamento de informação mais estendida do que os clientes que servem (que podem ser os media, mas também empresas, instituições políticas, financeiras, etc).

Uma faceta curiosa das agências reside no facto de serem entidades desconhecidas para a maioria dos cidadãos. Quem conhece os seus jornalistas, os seus directores e editores? E no entanto elas, apesar de alguma crise de identidade, desempenham um papel que é variável mas ao mesmo tempo fulcral no jornalismo dos nossos dias. E o tipo de jornalismo que produzem, assumidamente cingido ao essencial dos factos a noticiar, constitui uma referência daquilo que se considera essencial na prática jornalística.

A Lusa, que é a maior agência de notícias de Portugal e de língua portuguesa, é uma sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos. Além dos seus cerca de 200 jornalistas e 80 outros profissionais colaboradores regulares ou eventuais, distribuídos pelo país e em diferentes pontos do estrangeiro, conta com perto de cem funcionários nos diversos serviços (administrativos, comerciais, financeiros, técnicos).

O tipo de prática a que a peça principal desta página faz referência é considerado pelos observadores do nosso panorama mediático atípico no contexto da actividade habitual da agência. Deveria ter merecido, por isso, uma explicação aos assinantes e aos leitores que, por essa via, foram enganados. De facto, não foi apenas o JN a ter aceite por boa a correcção da informação acerca da investigação a Sócrates. Como é óbvio, também uma agência se pode enganar ou ser induzida em erro. Mas, até pelas especiais responsabilidades que lhe cabem no panorama jornalístico em que actua, deverá ser especialmente cuidadosa, nomeadamente em matéria de tanto melindre, em que se joga a sua credibilidade e a sua independência face ao poder político. Não havia fundamento para negar investigação a Sócrates’