Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Marcelo Beraba

‘A semana foi dominada por um escândalo, a quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa. Francenildo foi apresentado pelo ‘Estado de S. Paulo’ na edição do dia 14 de março, e a manchete do jornal resume a importância de seu testemunho: ‘Caseiro desmente Palocci e diz que ministro visitava mansão’.


A ‘mansão’ era uma casa alugada no Lago Sul de Brasília por ex-colaboradores de Antonio Palocci da época em que foi prefeito de Ribeirão Preto e teria sido utilizada para lobby. O ministro da Fazenda garantiu, em diversas ocasiões, que jamais esteve na casa. Francenildo foi a segunda testemunha a aparecer, depois do motorista Francisco das Chagas Costa.


O depoimento do caseiro criou uma situação ainda mais difícil para Palocci, já acuado por várias acusações referentes, principalmente, aos períodos em que foi prefeito. No dia 16, uma quinta-feira, Francenildo reafirmou, na CPI dos Bingos, que vira o ministro na tal casa, mas uma liminar do STF, concedida a um senador do PT, suspendeu a sessão.


Na sexta-feira à noite, a revista ‘Época’ inaugurou o seu ‘Blog Brasil’ (www.blogbrasil. globolog.com.br) com uma informação exclusiva e de repercussão imediata: ‘Extratos revelam depósitos para caseiro’. A informação antecipava a reportagem que seria publicada na edição em papel que estava sendo concluída.


Os repórteres da ‘Época’ tiveram acesso aos extratos da conta do caseiro na Caixa Econômica Federal e decidiram publicá-los, mesmo sabendo que tinham sido obtidos ilegalmente, por os considerarem ‘jornalisticamente relevantes’ (vide texto ao lado). O título da revista é uma pergunta: ‘Quem está dizendo a verdade?’.


A revista levantou a hipótese de o caseiro ter recebido dinheiro para testemunhar contra o ministro Palocci. O caseiro negou. Informou que o dinheiro tinha sido depositado por um empresário do Piauí que não o reconhece como filho. A história é confirmada pelo empresário.


Mesmo assim, a revista cravou que ‘os extratos põem em dúvida a credibilidade do caseiro’. Por quê? Mais adiante a revista afirma que ‘o caseiro pode até não ter mentido [em relação ao ministro Palocci], mas escondeu de todos que tinha tanto dinheiro’. E por que teria de revelar que tinha o dinheiro?


A reportagem da ‘Época’ deslanchou dois movimentos. Do lado do governo, uma operação para preservar o ministro e desmoralizar o caseiro, antes testemunha e agora investigado pela Polícia Federal e pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, do Ministério da Fazenda. Do lado da oposição, da imprensa e de várias instituições e personalidades, uma onda de repúdio pela violação criminosa do sigilo bancário.


Público x privado


Pouco se discutiu a respeito da decisão da ‘Época’ de publicar os extratos obtidos ilegalmente. Meu ponto de vista sobre a reportagem da revista:


1 – A violação do sigilo bancário é um crime grave e justifica a indignação estampada nos editoriais dos jornais e nas cartas de leitores. Além dos prejuízos pessoais provocados ao caseiro, é um atentado à democracia.


2 – O fato de a revista ter publicado o extrato não significa que ela também tenha cometido o crime. No caso, a responsabilidade pela manutenção do sigilo era da CEF. Há, a meu ver, um fator fundamental que pode justificar -como já ocorreu inúmeras vezes- a publicação de informações verdadeiras de origem ilegal que chegam às mãos dos jornalistas: o interesse público.


A Folha tinha ciência de que as fitas do BNDES que gravavam conversas sobre o escândalo da privatização das telefônicas, em 1998, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, tinham sido feitas ilegalmente. Verificada a autenticidade delas, decidiu publicar as partes que tinham interesse público (e nunca revelou os trechos com intimidades dos grampeados).


3 – No caso dos extratos de Francenildo, a revista ‘Época’ cometeu, na minha opinião, os erros de ação e de omissão. Explico.


4 – A revista foi precipitada ao tornar pública a história familiar do caseiro. Naquela sexta-feira, dia 17, a publicação não tinha nenhum indício para colocar em dúvida a credibilidade da testemunha. O que ela tinha em mãos eram suposições, e deveria ter se dado mais tempo para investigar antes de publicar. A relação de Francenildo com o empresário que ele diz ser seu pai faz parte da sua vida particular. É até possível que o caseiro esteja mentindo e que o dinheiro tenha outra origem. Mas até agora nada foi provado.


5 – A revista estava, no entanto, com uma grande história e não deu atenção: os extratos foram obtidos através da violação criminosa do sigilo bancário do caseiro dentro da CEF, banco subordinado ao ministro Palocci. Este, por enquanto, é o grande escândalo. A revista ignorou o crime e, mesmo diante da falta de provas contra Francenildo, decidiu expor publicamente sua vida familiar. Uma completa inversão de critérios jornalísticos.


Sem comparação


Muitos leitores escreveram questionando a indignação manifestada pelos jornais com a quebra do sigilo bancário de Francenildo. Procuraram comparar o caso com o do ministro Palocci, que teria tido a sua intimidade violada quando foi revelado que freqüentava a casa do Lago Sul. Acho que não tem comparação. O ministro é um homem público e ele sempre informou que nunca esteve na casa. Se for provado o contrário, terá cometido uma mentira grave.


Também não vejo como comparar o que ocorreu com o caseiro com o vazamento de informações sigilosas, obtidas legalmente, de acusados de estarem envolvidos com o valerioduto. São homens públicos investigados por terem se beneficiado de esquemas ilegais de levantamento de recursos para o enriquecimento pessoal ou para uso político.’


***


‘A revista – ‘Interesse nacional’’, copyright Folha de S. Paulo, 26/3/06.


‘Recebi do diretor de Redação da revista ‘Época’, Hélio Gurovitz, cópia da mensagem que será publicada na seção de cartas dos leitores da edição desta semana:


‘Sobre a publicação das informações bancárias do caseiro Francenildo dos Santos Costa, esclarecemos que:


1) Julgamos as informações jornalisticamente relevantes.


2) Decidimos revelá-las apenas depois de conferir a veracidade com o advogado do próprio caseiro.


3) Publicamos as explicações do advogado e do suposto pai biológico do caseiro para a origem do dinheiro.


4) O livre exercício da atividade jornalística pressupõe a garantia do sigilo das fontes’.


Além disso, recebi de Gurovitz, por e-mail, respostas para duas perguntas que encaminhei:


Ombudsman – Por que a revista considerou relevante a publicação do extrato mesmo sabendo que havia sido obtido ilegalmente?


Hélio Gurovitz – Porque as informações foram consideradas relevantes para a melhor compreensão de um caso de interesse público.


Ombudsman – Por que a revista decidiu publicar a reportagem mesmo diante da evidência de que poderia se tratar de um drama familiar?


Gurovitz – A versão do ‘drama familiar’ também está contemplada na nossa reportagem. Não publicar a reportagem significaria omitir do público uma possível motivação para um depoimento de interesse nacional.’