Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Margareth Sullivan

A recente matéria sobre George Bell – um homem que morreu sozinho, em seu apartamento no bairro de Queens, tão isolado do mundo que seu corpo só foi encontrado dias depois – foi profundamente comovente. E também foi lida por um número extraordinário de pessoas.

O tamanho da matéria (8 mil palavras) não desencorajou o imenso número de leitores que a encontrou na homepage do jornal, em sua versão digital, ou em seus smartphones. Na realidade, mais de três milhões de pessoas leram a matéria de N.R. Kleinfield; os que a leram em seus smartphones passaram, em média, seis minutos na leitura – o que, de acordo com um comunicado divulgado pela redação, “é uma eternidade, em termos de aplicativos móveis”.

E embora seja pouco comum as pessoas escreverem à ombudsman elogiando uma matéria (pelo contrário: minha mesa de trabalho é uma espécie de central de reclamações), isso aconteceu neste caso. Um leitor chamou-a a melhor matéria que já leu no Times até hoje. Outro sugeriu que deveria ganhar um prêmio Pulitzer. Jack Latona, por exemplo, elogiou “a fantástica pesquisa, carregada de emoção, da redação”, assim como aquilo que descreveu como uma lição inesquecível: “toda a vida tem uma história e toda a vida tem valor”.

Mas nem toda a reação foi inteiramente positiva. Alguns leitores mostraram-se preocupados com a intromissão – até na morte – na história pessoal de um homem que decididamente valorizava sua privacidade. Eles questionavam o que dava direito ao Times de estampar uma foto de seu apartamento bagunçado na primeira página, para que todos vissem, ou de divulgar suas velhas cartas de amor ou seus históricos médicos.

Um substituto para as pessoas que morrem sozinhas

Barbara J. King, professora de antropologia na universidade William & Mary, classificou a matéria como “um texto de jornalismo investigativo da maior importância, mas, por outro lado, um atoleiro em termos de ética”. À medida que lia a longa matéria, escreveu ela, “eu me sentia inquieta por estar me intrometendo numa vida privada e compreendendo que o homem em questão não tinha direito a se pronunciar sobre a maneira pela qual o mundo sabia como ele vivia”.

E David Schlesinger, de Hong Kong, ex-editor-chefe da agência Reuters, escreveu: “Eu apreciei a matéria, mas me preocupo bastante com o fato de que a própria solidão do cidadão o tenha tornado presa fácil para uma matéria que, ao que parece, teria manifestado sua oposição se ele estivesse vivo e se isso lhe tivesse sido perguntado.”

O autor da matéria e o editor disseram-me que essas questões foram levadas em consideração à medida que era feita a pesquisa e o texto ia sendo escrito. Michael Luo, editor do projeto, disse-me que Kleinfield discutiu a matéria com Frank Bertone, que era o melhor amigo de George Best nos últimos tempos de sua vida, assim como o fez com as pessoas citadas em seu testamento. “Todos eles, sem exceção, gostaram da ideia da matéria e acharam que George se iria divertir com ela”. Esse, segundo Michael Luo, foi um fator importante para levar a ideia em frente. Ele acrescentou que os obstáculos legais à divulgação de toda a matéria foram eliminados quando um juiz determinou que o jornal tivesse acesso ao processo.

Kleinfield escreveu num e-mail que “a acumulação de lixo e o estado em que estava o apartamento foram importantes para compreender como ele terminou ficando sozinho e um ponto crucial para a produção da matéria foi a tentativa de compreender por que as pessoas acabam morrendo sozinhas”. Ele disse que George Bell “fazia o papel de substituto para todas as pessoas que morrem sozinhas”.

A exploração completa de uma vida e morte

A reação dos leitores tocou nesse ponto, disse Kleinfield. Muitos deles escreveram-lhe dizendo que iam “parar de acumular lixo devido à preocupação de que se pudessem tornar viciados e começar a se isolar de tudo. Isso foi uma das mudanças de comportamento provocadas pela matéria. Uma mudança maior, evidentemente, seria aproximar-se das outras pessoas e partilhar sua vida com elas”.

Perguntei ao editor-executivo, Dean Baquet, sobre suas preocupações com a privacidade. “Não acho que a matéria abordasse questões éticas”, disse Baquet. “Não ofende ninguém e é sobre uma verdade mais ampla.” A matéria, segundo Baquet, deu à vida de George Bell um significado enorme e teve um impacto positivo para muitas pessoas.

Os jornalistas esbarram frequentemente em questões de privacidade, principalmente quando estão escrevendo sobre as vidas de pessoas comuns. Uma coisa é fazer revelações sobre pessoas e instituições poderosas, muitas das quais têm assessores de imprensa ou agências de relações públicas para representá-las. E outra, muito diferente, é por a descoberto a vida privada de alguém.

A maioria dos jornalistas – e tenho certeza que esse é o caso de Kleinfield, que é um dos melhores – tem consciência disso e esforça-se por garantir que as pessoas comuns compreendam os efeitos de uma investigação pública, que poderá, inclusive, lhes servir de trampolim para um palco global. A síntese jornalística seria “proteger as pessoas de si próprias”. (A jornalista e escritora Joan Didion tinha uma visão muito mais sombria da tensão entre fonte e sujeito. “Os jornalistas”, notava ela, “estão sempre vendendo alguém.”)

Quando a pessoa morre, surgem diferentes tipos de questões, principalmente quando essa morte não envolve parentes conhecidos. Ao escrever sobre George Bell, o Times tomou a decisão de que um bem maior poderia ser servido por meio de uma exploração completa de sua vida e morte. Embora eu compartilhe das legítimas preocupações dos leitores, acho que essa decisão foi razoável. A matéria que dela resultou iluminou e comoveu muitas pessoas – e fez a diferença. É isso que faz o melhor jornalismo.

Espero que George Bell tivesse concordado com isso. Porém, apesar de tudo o que aprendemos sobre a vida e a morte deste homem solitário, isso é algo que nunca poderemos saber.

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Margaret Sullivan é ombudsman do New York Times