Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Suzana Singer

“‘A FOLHA dá ouvidos a quem não merece.’ A frase, de um leitor, resume bem a indignação que tomou conta de muitos após a publicação de grandes entrevistas com os motoristas que mataram recentemente dois jovens no trânsito de São Paulo.

No último dia 23, a coluna ‘Mônica Bergamo’ trouxe um depoimento do engenheiro Marcelo Malvio Alvez de Lima, 36, que bateu seu Porsche no Tucson de uma jovem advogada no Itaim, matando-a (aqui). Uma semana depois, Cotidiano deu uma entrevista com Gabriella Guerrero Pereira, 28, que afirmou estar dirigindo o Land Rover do namorado que atropelou e matou um administrador de empresas de 24 anos na Vila Madalena (aqui).

O fim trágico dos dois jovens provocou uma onda de fúria –contra a violência no trânsito, contra a impunidade dos mais ricos, contra os que bebem e dirigem –, que respingou no jornal, acusado de dar espaço demais a ‘gente bem-nascida e malcriada’, na definição de uma leitora. Foram 45 mensagens, apenas três defendendo a Folha.

‘Foi um desserviço, beira a desfaçatez. Apenas uma longa e emotiva defesa do acusado, sem reflexão nenhuma, arrematada com um aflito pedido de mãe’, escreveu o advogado Paulo Cuaresma Lobato, 49, de Recife, depois de ler a entrevista com o motorista do Porsche.

Sobre o depoimento de Gabriella, o cineasta Marcello Bloisi, 45, de São Paulo, disse: ‘A Folha coloca sua credibilidade em jogo ao publicar uma entrevista assim. Em vez de buscar a verdade, o repórter só fez perguntas que ajudavam a justificar o acidente’.

Não é comum que o chamado ‘outro lado’, a versão do acusado, provoque tamanho mal-estar. Os leitores estão certos sobre as falhas jornalísticas apontadas, principalmente no depoimento do engenheiro: sua fala foi separada em tópicos, sem as perguntas feitas pelo jornalista, dando uma impressão de que a Folha estava ‘engolindo’ tudo o que ele disse.

Na entrevista com a nutricionista, embora as perguntas pudessem ter sido mais incisivas, a editoria teve o cuidado de colocar um contraponto: o texto contando que ela não fez o teste do bafômetro.

As duas conversas, exclusivas, feitas nos escritórios dos advogados de defesa, tiveram momentos de choro dos entrevistados e referências a Deus, o que contribuiu para essa imagem de jornalismo ‘chapa-branca’, definida pelo colunista Fernando de Barros e Silva como ‘indústria da desculpabilização midiática’ (aqui).

Poderiam ter sido mais bem editados, mas a Folha agiu corretamente ao publicar os dois ‘outros lados’. O engenheiro reclamou, com razão, que, desde o acidente, vem sendo tratado como ‘dono do Porsche’, como se não tivesse nome, profissão, não fosse alguém.

A televisão repetiu inúmeras vezes a imagem dele falando ao celular após a batida, ‘sem se importar se no outro carro havia alguém ferido’, como se fosse possível concluir algo sobre o caráter de uma pessoa nos minutos seguintes a algum evento extraordinário, que aumenta a adrenalina enormemente e diminui a ação do superego. Com Gabriella, insistiu-se também em dizer que ela estava preocupada só com o namorado e em assumir a culpa pelo atropelamento.

Por mais terrível que tenham sido os acidentes, é justo que os acusados tenham espaço para contar suas versões -mesmo que sejam roteirizadas por advogados e entremeadas por tentativas de sensibilizar a audiência. Publicá-los não significa que o jornal endosse esses depoimentos. É melhor pecar pela ‘hipercorreção’ do que pelo linchamento prévio, que é o erro em que geralmente a imprensa incorre.

Para as famílias dos jovens mortos, imagino que não exista reparação possível. A condenação dos responsáveis seria o mínimo. Mas isso cabe à Justiça.

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