Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A profanação do especialista no jornalismo

O especialista, sobretudo o fabricado na academia, se converteu em fonte elementar no jornalismo. Sua palavra parece dar um selo de qualidade ao conteúdo noticiado e seu título, às vezes, basta para que seja ouvido como autoridade. Pode isso, Agamben?

Filósofo italiano, continuador de pensadores como Martin Heidegger (1889-1976) e Michel Foucault (1926-1984), Giorgio Agamben provavelmente diria “não, não pode”. Ele condena a sacralização moderna de coisas e pessoas – e esse pode ser o caso de muitos dos especialistas consultados pelo jornalismo.

Sagrado é aquilo que foi retirado do uso comum. Algo que foi catapultado a um status superior. Agamben critica o sagrado. Entende que chegou a hora de profanar aquilo que foi sacralizado pela comunidade humana. Ou, como diz o filósofo brasileiro Selvino Assmann, busca “devolver à comunidade humana aquilo que foi subtraído ao uso comum através da sacralização”.

Para Agamben, profanar significa romper a barreira simbólica e tocar no consagrado para libertá-lo (e para libertar-se) do sagrado. Profanar “não significa só abolir e cancelar as separações” entre as esferas comum e superior, “mas aprender a fazer um uso novo” delas.

A religião, sustenta o italiano, é o dispositivo que mais “subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere a uma esfera separada”. Mas a mídia também tem este poder, segundo Agamben, porque ataca o “poder profanatório da linguagem”.

14 mil doutores por ano

A relação fonte/jornalista já foi estudada à exaustão – exemplo clássico está na Teoria dos Definidores Primários, que diz que, antes dos jornalistas e dos donos das empresas jornalísticas, quem define os rumos da reportagem são as fontes, ou definidores primários.

O mesmo ocorre com a capacidade dos meios de comunicação de produzir seres quase sagrados – uma mostra disso está na teoria crítica, que vê a mídia como instrumento social capitalista, com poder para criar personalidades que vendam produtos.

Na perspectiva filosófica, tal relação também foi abordada, mesmo que de maneira indireta: Foucault dizia que aquele que detém um saber específico (no caso, o especialista) exerce um poder sobre os demais (no caso, o jornalista); e Hannah Arendt (1906-1975) dizia que a humanidade, sobretudo por influência da filosofia grega e do cristianismo, sempre priorizou a erudição (ideia de superioridade, historicamente relacionada à academia) ante a ação (a vida cotidiana, cheia de penas e fadigas, fora da torre de marfim).

A sacralização criticada por Agamben está na esfera filosófica. Por isso mesmo pode ajudar o jornalismo a refletir sobre as fontes que consulta. Bastam os diplomas? O título de doutor? O emprego em uma universidade conceituada é suficiente? Não haveria em algumas dessas figuras, sobretudo em um país empobrecido e com educação precária, um traço de algum tipo de sacralização?

Atualmente, segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) do Ministério da Educação, o Brasil forma 14 mil doutores por ano. A imprensa tem a dura tarefa de identificar, se for o caso, quais deles podem ser “sacralizados” e quais devem ser profanados.

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 Jeferson Bertolini é repórter e doutorando em Ciências Humanas