Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Washington, Summit for Democracy: retomando o controle da América Latina?

Washington, nos dias 9 e 10 de dezembro de 2021, aconteceu a Cúpula para a Democracia – Summit for Democracy. Foram convidados cerca de uma centena de governantes oriundos de todos os continentes. A América Latina, a exemplo das demais regiões do globo, esteve presente. Entretanto, a lista dos países convidados e dos deixados de fora revelam um particular ativismo diplomático que suscita questões. Nos últimos meses, a região ao sul do Rio Grande, esquecida nos primeiros meses do mandato de Joe Biden, vê-se agora, de modo excepcional, como objeto de desejo.

Nos dias 1 e 2 de junho de 2021, o Secretário de Estado Antony Blinken fez sua primeira viagem à América Latina com destino a Costa Rica. Além das autoridades locais, ele também se reuniu com as do SICA (Sistema de Integração Centro-americana). No dia 8 de junho, a vice-presidente, Kamala Harris, esteve na Cidade do México. No dia 11 de setembro, o Secretário de Estado Antony Blinken anunciou que a próxima Cúpula das Américas, a se realizar em Washington em 2022, terá sua atenção voltada para questões pertinentes à migração e à democracia. Algumas semanas depois, no dia 8 de outubro, ele mesmo assinou, na Cidade do México, um protocolo de segurança válido para os dois países. Na sequência, entre os dias 19 e 21 de outubro, em visita à Colômbia e ao Equador, parabenizou ambos os governos, apresentando-os como modelos de virtude democrática e de combate à corrupção. A agenda do México e de suas extensões centro-americanas foram tema de discussão no dia 18 de novembro, durante a chamada cúpula dos “três amigos” ou líderes das Américas (Canadá, Estados Unidos, México). No dia 1º de dezembro, os Estados Unidos e o México anunciaram o início de um plano para melhorar as economias de três países centro-americanos que exportam imigrantes: Guatemala, Honduras e El Salvador. No dia 6 de dezembro, a Cidade do México e Washington prorrogaram o acordo firmado sob os termos de Donald Trump e Enrique Peña Nieto, deportando requerentes de asilo que entraram ilegalmente nos Estados Unidos de volta ao território “asteca”.

Tais atos diplomáticos representaram, ao longo de alguns meses, uma espécie de trilha sonora original tocada pela Casa Branca em grande parte do território latino-americano. Sua partitura nos oferece as necessárias chaves de leitura, por assim dizer, que nos permitem interpretar tanto a inserção dos doze governos convidados a se juntar à Cúpula da Democracia – Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai – quanto a exclusão de outros governos pela mesma tablatura – Bolívia, Cuba, Guatemala, Haiti, Nicarágua, Salvador e Venezuela.

Vários foram os sinais emitidos pelo governo dos Estados Unidos entre junho e dezembro. Alguns deles apontam para aquela direção reivindicada pelos promotores norte-americanos da conferência. As FARC foram retiradas da lista de organizações terroristas. Os países com índice democrático amarelo e vermelho foram mantidos de fora, em especial os do Triângulo Norte da América Central, Haiti, Nicarágua e Venezuela. Menos compreensível, no entanto, é a presença do Brasil de Jair Bolsonaro, que abalou, desde sua ascensão ao poder, o equilíbrio democrático do país, e ademais isentando-se, por meses a fio, de administrar a pandemia de Covid-19, além de ter seu nome pessoal e o de membros de sua família citados em vários escândalos e polêmicas. A ausência da Bolívia de Luis Alberto Arce, eleito em condições indiscutíveis após vários meses de derrapagens democráticas, chama a atenção. Os chamados “critérios para uma vida democrática”, tais como definidos pelo Departamento de Estado estadunidense, “respeitar a lei, lutar contra o autoritarismo, as desigualdades e a corrupção”, ajudaram a escantear o Chile e o Equador – países cujos chefes de Estado são citados nos “Panamá Papers”. Cuba, por outro lado, poderia ter sido beneficiada por um convite indulgente, levando em conta o seu voluntarismo social.

As iniciativas tomadas ou anunciadas ali dão, à grande aliança democrática proposta por Washington nos dias 9 a 10 de dezembro, um colorido que reflete aqueles seus interesses estratégicos: a integração econômica do México, a impermeabilização da fronteira comum, uma gestão estritamente controlada das migrações centro-americanas e haitianas, a contenção de competidores de fora do Hemisfério Ocidental, a inclusão em listas negras daqueles países amigos de governos suspeitos, tais como China e Rússia (Cuba, Bolívia, Venezuela etc.). O certificado democrático associado ao convite para essa Cúpula Democrática credencia os valores morais compartilhados, mas também o respeito pelos deveres econômicos, migratórios e hemisféricos que atendem às expectativas dos Estados Unidos.

E não foram poucos os deslizes democráticos e as evidências de corrupção em anos recentes na região ao sul do Rio Bravo. Por sua vez, eles não parecem ter sido relevantes o suficiente como para despertar a comoção de Washington. Por outro lado, o desejo de independência do Brasil e da Venezuela, gerando coalizões regionais que excluíam os Estados Unidos e Canadá, tais como a Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América), BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, Sul África), CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), Unasul (União de Nações Sul-Americanas), com aberturas comerciais, militares e tecnológicas para China, Rússia, Turquia e Irã, preocuparam Donald Trump e mobilizaram tanto Joe Biden quanto os seus diplomatas.

Alba, Celac e Unasul, abaladas pela conjuntura econômica global e os reveses eleitorais sofridos por seus iniciadores, perderam seu ímpeto e atrativos inaugurais. Seus inventores, no entanto, ainda que semi ou plenamente aposentados, persistem em atividade. O fazem por meio de um agrupamento chamado Puebla. Na Bolívia, o ex-presidente Evo Morales tenta agora articular, desde o dia 2 de agosto de 2021, uma união dos povos da “América Plurinacional”, ou “Abya Yala”, assim como seus respectivos movimentos sociais, denominados “Runasur”. A segunda reunião, marcada pelo grupo para os dias 20 e 21 de dezembro de 2021, ocorrerá na cidade de Cuzco, Peru, onde, desde o dia 28 de julho de 2021, preside o progressista andino Pedro Castillo. China e Rússia encontram um eco crescente, fruto de uma proximidade ideológica, tanto com o Chile quanto com Cuba. Após uma longa ausência, a Europa reaparece visando atuar como o fiel da balança. O Alto Representante da política externa da União Europeia, Josep Borrell, visitou o Peru e o Brasil entre os dias 1 e 4 de novembro de 2021. A União enviou também observadores às eleições regionais venezuelanas de 21 de novembro de 2021 além de realizar uma cúpula virtual da União Europeia / Celac no dia 3 de dezembro.

Esse contexto alternativo nos permite compreender o porquê de a Bolívia, em busca de autonomia, ser excluída da grande aliança democrática e lançada no mesmo balaio que Cuba e Venezuela. O Chile e o Equador, liderados por chefes de estado “liberais”, foram apresentados aos demais como exemplos a serem seguidos. O México, parceiro econômico essencial, detentor de recursos energéticos e minerais significativos, cancela de migrações, foi poupado por Biden, a ponto de permitir que lhe regressasse, em 2021, o general Salvador Cienfuegos, chefe da segurança nacional do México dos anos de 2012 a 2018, da prisão estadunidense em que fora preso em 2020 por tráfico de drogas. Andrés Manuel López Obrador é, com toda certeza, um parceiro adorável. “As relações com os Estados Unidos”, disse ele às vésperas da visita da vice-presidente Kamala Harris ao país, “são excepcionais”. O comunicado conjunto emitido no final da Cúpula dos Líderes da América do Norte sinaliza a abordagem unificada seguida por Cidade do México, Ottawa e Washington. Às palavras cerimoniosas, seguiram-se decisões concretas validando as expectativas de Washington. O presidente Andrés Manuel López Obrador, em três anos de mandato, visitou apenas um país estrangeiro e em três distintas ocasiões: os Estados Unidos. É certo que ele também convidou os chefes de estado cubanos e venezuelanos para várias comemorações. Mas se afastou do grupo Puebla, criado no México, do qual nunca recebeu integrantes. Seu discurso nacionalista se volta contra a Espanha, a quem critica regularmente. Propôs perspectivas alternativas para a Celac – tendo em vista que o México detém a presidência rotativa do mesmo. Declaração que pareceu sugerir também a concepção de uma aliança que poderia incluir toda a América.

A Cúpula da Democracia – Summit for Democracy – atualiza, no que diz respeito a América Latina, uma tradição diplomática democrática: aquela que se preocupa em fornecer justificativas morais para a defesa de interesses de ordem concreta. No dia 02 de junho de 2021, Antony Blinken, falando na Costa Rica, deu o tom da toada: “as pessoas deixam seus lares [para emigrar por falta de] um bom governo […] quando a democracia e os direitos humanos são desafiados. […] O que queremos de nossos parceiros é o compromisso de combatermos juntos as mais profundas causas da migração ilegal”.

Texto publicado originalmente em francês, em 8 de dezembro de 2021, na seção ‘Analyses’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “Washington, Sommet de la démocratie: vers une reprise en main de l’Amérique latine ?”. Tradução de Thiago Augusto Carlos Pereira. Revisão de Luzmara Curcino.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.