Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa sem Gutenberg

O livro escrito pelos jornalistas franceses Jean-François Fogel e Bruno Patiño não é provocativo apenas pelo seu título. Ele vai muito além ao propor algumas teses que estão causando calafrios em muitos dos seus colegas de profissão.

A tese central do livro é a de que jornalismo nunca mais será o mesmo depois do surgimento da internet porque todos os valores, rotinas e estratégias da atividade estão sendo colocados de pernas para o ar pelos que os dois chamam de ‘combinação de algoritmos e da audiência’.

Lançado na França em outubro de 2005, Une Presse Sans Gutenberg (Uma imprensa sem Gutenberg) defende que a internet destruiu os privilégios dos jornalistas e vai ainda mais longe: de acordo com os autores, ‘é o fim do jornalismo na forma como ele é praticado hoje’. Escreve a dupla de autores:

‘Na rede mundial de computadores, está nascendo uma nova imprensa, com sua identidade, sua linguagem, seus jornalistas apoiados por ‘parceiros’ que, como eles, alimentam e editam suas páginas informativas: os navegadores, blogueiros e internautas. Não esquecendo os algoritmos e motores de buscas. Neste contexto, o processo de destruição e de recriação que afeta a imprensa contemporânea torna-se irreversível. Forçada a revisar sua relação com a audiência, ela [imprensa] não está reescrevendo um novo capítulo da sua história, mas uma outra história.’ [Tradução livre, C.C.]

(Parênteses: um algoritmo é uma seqüência finita e não ambígua de instruções para solucionar um problema. Um algoritmo não representa, necessariamente, um programa de computador, e sim os passos necessários para realizar uma tarefa. Sua implementação pode ser feita por um computador, por outro tipo de autômato ou mesmo por um ser humano. Verbete da Wikipedia)

Projetos inovadores

A imprensa francesa reagiu discretamente às idéias lançadas pelo livro porque, ao contrário da mídia norte-americana prefere não falar da crise. Trata-se de uma estratégia seguida também pelos grandes grupos de comunicação no Brasil, que acreditam poder resolver internamente os seus problemas, sem grande alarde e sem a participação do público.

Jean-François Fogel e Bruno Patiño são dois jornalistas com um currículo raro na profissão. Fizeram carreira num dos mais tradicionais jornais europeus, o Le Monde (onde não faz muito tempo ainda existiam repórteres que escreviam matérias a mão), e sem sair da mesma empresa estão hoje na vanguarda da chamada ‘webificação’ do jornalismo.

(Outro parêntese: no jargão na internet, o termo webficação é usado para identificar o processo de adaptação de um sistema convencional à internet.)

A maior parte do livro é dedicada à análise das transformações pelas quais está passando a atividade jornalística nos últimos 10 anos, depois que a internet se transformou num fenômeno mundial.

Fogel e Patiño gastam mais de um capítulo listando experiências e projetos inovadores em matéria de uso da internet e de participação do público na produção e distribuição de notícias. Defendem a recente reforma gráfica e editorial na versão impressa do Le Monde e a proposta do Monde Online, especialmente a estratégia de dar acesso gratuito ao conteúdo do jornal para internautas.

Público novo

Mas eles fazem algumas afirmações polêmicas que vão além do que está acontecendo. Algumas delas merecem reflexão:

** ‘A produção da informação deixou de ser importante. Ela está em todos os lugares. Em compensação, o controle da busca e sua transferência [de informações] transformaram-se em atividades essenciais. Todo veículo de comunicação instalado no ambiente online está submetido a esta hierarquia num jogo novo, no qual os homens têm importância igual à dos sistemas.’ [Tradução livre, C.C.]

Os dois autores dão uma enorme importância ao papel da tecnologia no chamado jornalismo online. Um dos capítulos tem o sugestivo título de ‘Algorithme, mon semblable, mon frère’ (Algoritmo, meu igual, meu irmão). Para eles, os mecanismos de buscas de informações na web são o supra-sumo da aplicação da tecnologia dentro do jornalismo online, porque permitem a automatização da garimpagem de notícias.

É um assunto que vai provocar muita discussão nas redações e principalmente nas faculdades de jornalismo, porque alguns dos processos e rotinas mais tradicionais do jornalismo contemporâneo foram colocados em questão. As idéias de Fogel e Patiño entram em conflito com o modelo atual de ensino na maior parte das escolas de comunicação no Brasil e no mundo.

** ‘A informação existente na internet é menos importante do que os meios para encontrá-la’ [Idem, pela tradução]

Trata-se de uma afirmação importante porque ela está baseada na nova realidade criada pela avalancha informativa gerada internet. O excesso de material digitalizado reduziu o valor da informação e aumentou o dos recursos, ferramentas e estratégias para localizá-la e contextualizá-la. Por isto que o Google e o Yahoo! estão entre as quatro maiores empresas da web mundial.

Seguindo esta linha de raciocínio, os jornalistas online terão que conhecer os algoritmos e sistemas de buscas. Isto reforça a tese dos que acham que o jornalista do futuro será basicamente um tutor. Mais do que um conselheiro, acredito que esse novo profissional terá que fundamentalmente preocupar-se com a contextualização das notícias, porque sem ela o risco de desinformação cresce exponencialmente.

** ‘A internet é uma mídia sem massa. As redes são mais importantes do que as pessoas. O conceito tradicional de audiência como a soma de indivíduos é substituído pelo das redes, que criam suas próprias comunidades e seus próprios valores.’

Esta é a idéia básica do livro sobre a questão da audiência, ou seja, do público que acessa a internet procurando informações. Aqui também a ruptura com a tradição é radical e, de certa forma, ainda totalmente ignorada pela grande imprensa mundial. Numa troca de mensagens com Francis Pisani, especialista em novas tecnologias, os próprios autores do Une Presse Sans Gutenberg reconheceram que ainda falta estudar melhor o novo papel do público.

Nova realidade

Os autores prevêem que a imprensa tentará se reorganizar em função de realidades irremediáveis como a do primado da internet; da obrigação de organizar sua presença na rede; e da coexistência de dois mundos, um real e outro virtual, que deverão ser cobertos pelos jornalistas.

Fogel e Patiño antecipam que…

‘…duas atitudes podem ser vislumbradas desde agora. A primeira, mais comum, é a denúncia simples da má fase vivida pela imprensa. A outra atitude, a nossa, se baseia, ao contrário, na convicção de que o jornalismo não procurou se reinventar, apesar das mudanças impostas pela popularização das tecnologias digitais, notadamente da internet.’

Está mais do que na hora de a imprensa acordar.

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Jornalista e autor do blog Código Aberto, deste OI