Monday, 02 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

A Pauliceia que o poeta viu

Em “A Capital da Vertigem”, Roberto Pompeu de Toledo enfrenta um desafio muito maior do que teve pela frente em “A Capital da Solidão”, que em 2003 o lançou como um dos principais historiadores da cidade de São Paulo.

Naquele livro, que vai das origens a 1900, o autor lidou com uma vilazinha acanhada que perto do fim do período ainda era, em sua definição, “um ovo”. Essa natureza do objeto de estudo tornava o todo perfeitamente apreensível. O desafio, então, foi transportar o leitor para um lugar pacato, fazendo-o se interessar por personagens em geral obscuros.

Na nova obra, que foca a primeira metade do século XX, a dificuldade a ser superada é de outra ordem. Aqui, não apenas os protagonistas e suas histórias são conhecidos como as consequências de suas ações ainda podem ser sentidas. Além disso, a metrópole em que São Paulo se transformou é grande e diversificada demais para ser captada como um conjunto único.

No início, a cidade com pouco mais de 200 mil habitantes ainda guarda alguma semelhança com a capital da solidão. “A São Paulo da virada do século era isto: metade avanço metade atraso, metade urbana metade rural, trepidante no seu miolo e sonolenta nos arredores.” Na primeira década, a indefinição persiste: “O cheiro da gasolina já se insinuava no ar, mas o do estrume dos cavalos ainda permanecia dominante”.

A cidade começa a ficar reconhecível a partir da “fúria reformista” da segunda década. “O viaduto do Chá, o Theatro Municipal e a reforma do Anhangabaú selaram o destino de São Paulo: a centralidade da cidade tomaria o rumo oeste”, escreve Pompeu. Quanto ao lado leste, abrigou as fábricas e os bairros operários.

O livro incorpora, embora de maneira secundária, uma perspectiva de classe. Pompeu descreve as delícias da “belle époque” a bordo dos primeiros carros, mas sublinha que elas estavam ao alcance apenas de uma reduzida elite. “A vida moderna era uma festa móvel para quem possuía o bilhete de primeira classe.”

Os que haviam “ingressado na modernidade com bilhete de terceira classe” experimentavam “o lado B do processo de industrialização”. O autor explica: “Dentro das fábricas a revolução industrial paulista reencenou, com mais de um século de atraso, as condições da matriz inglesa”. Ou seja, jornadas de até 14 horas seis dias por semana, sem férias, em ambientes sufocantes onde crianças eram espancadas.

Explicação sucinta

Jornalista com passagens pelas redações dos principais jornais e revistas do país, Pompeu, hoje colunista da “Veja”, é dono de um texto envolvente. Ele cadencia a narrativa, às vezes retardando a descrição de passagens mais saborosas para manter a tensão. “Vamos sem pressa” é uma frase que sugere o estilo.

Mas o uso das ferramentas da ficção (gênero que ele também praticou) não seria suficiente para recomendar “A Capital da Vertigem”. Se o livro se impõe na vasta e competente bibliografia sobre São Paulo é porque Pompeu, a par do investimento de três anos de dedicação à empreitada, encontrou maneiras adequadas de abordar uma história por demais familiar.

Dependendo do assunto em pauta, ele optou por destacar o detalhe menos conhecido, fixar uma interpretação ou apresentar uma síntese memorável. A Semana de 22, o tenentismo e a Revolução Constitucionalista são, respectivamente, exemplos dessa estratégia.

Sobre o movimento modernista seria difícil agregar uma informação relevante que não tivesse sido explorada por seus vários historiadores. Pompeu resume o básico para se demorar um pouco mais, não na consagração pela vaia no Municipal – um fato que integra o repertório de um aluno de ensino médio –, mas no detalhe da orquestração da vaia. Embora sem cravar a informação, ele endossa a versão de que os apupos teriam sido encomendados pelo próprio patrocinador do evento, Paulo Prado, para quem, sem controvérsia, a semana não teria impacto.

Outro detalhe: fora Mário de Andrade, nenhum outro escritor era modernista. “O modernismo era mais alardeado do que praticado”, escreve Pompeu. Oswald de Andrade “ainda não era”. Menotti Del Picchia “nunca o seria de todo”. E Guilherme de Almeida, “só quando se distraía”.

Em relação ao tenentismo, que deflagrou a Revolução de 1924 em São Paulo, Pompeu enfatiza ser “inútil procurar consistência nas proposições do movimento”. Para ilustrar, cita um exemplo convincente. Os rebeldes reivindicavam medidas como “voto secreto e censo alto”, a primeira democrática e a segunda elitista – censo alto significa que só “vota quem tem renda acima de certo (e elevado) patamar”.

E a derrota de São Paulo na Revolução de 32, talvez o episódio sobre o qual mais se escreveu, é explicada em cinco itens e poucas palavras. Perdeu porque 1) não conquistou apoio de fora; 2) faltou audácia aos comandantes; 3) os voluntários eram amadores; 4) havia insuficiência de armas e munições; e 5) a causa, a devolução do poder à oligarquia cafeeira, “já se encontrava arquivada pelos ventos da história”.

“O apogeu e o fim”

Mais do que análises, “A Capital da Vertigem” tem gente de carne e osso. Com as estatísticas fundamentais confinadas a poucos parágrafos, o autor abre espaço para traçar perfis e contar crimes que marcaram a cidade. Washington Luís, por exemplo, não é apenas o governador. Ele é o barítono de voz possante que se apresentava em saraus cantando árias de Verdi, talento com o qual conquistou a mulher. Mais adiante, num trecho trágico, Peixoto Gomide, além de figurão do Partido Republicano Paulista, é o homem transtornado que mata a filha prestes a se casar e se suicida, talvez porque, sem que ninguém soubesse, fosse também pai do noivo.

Edifícios e monumentos também são protagonistas. A história do Martinelli, o primeiro arranha-céu de São Paulo, vale por uma novela. Com as obras iniciadas em 1924, o prédio, que teria até 18 andares, só seria inaugurado cinco anos mais tarde, com 30, em meio a dúvidas, estampadas em manchetes de jornais, sobre se desabaria ou não.

O livro começa e termina falando do “Monumento às Bandeiras”, de Victor Brecheret, uma obra gestada antes da Semana de Arte Moderna e concluída três décadas depois, em 1953, a tempo de abrir as comemorações do Quarto Centenário.

É nesse momento, quando São Paulo se aproxima dos 3 milhões de habitantes, que Pompeu identifica “o apogeu e o fim” da cidade que retratou. “A capital da vertigem sustenta-se na ingenuidade de pensar que trilhava um caminho reto” rumo às principais cidades dos Estados Unidos e da Europa. “Não havia entrado em circulação o conceito de Terceiro Mundo”, comenta o autor, antes de concluir com uma nota que afasta qualquer hipótese de nostalgia: “A cidade era infeliz e não sabia”.

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Oscar Pilagallo é jornalista, autor de História da Imprensa Paulista (Três Estrelas) e organizador da coletânea “São Paulo, 450” (Publifolha)