Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O humor neoliberal da TV privada brasileira

Nietzsche se voltou contra o cristianismo, pois o considerava precursor e promotor de uma cultura de ressentimento e de culpa, dois afetos, para o autor de A genealogia da moral, que ocupavam o centro de nossa civilização ocidental e que eram os responsáveis para a constituição de uma cultura marcada pela moral do escravo, logo para a confecção de perfis humanos acovardados e humilhados, incapazes, nesse sentido, de afirmar a vida, com suas contradições e desafios.


Morrer, sermos mortais, para Nietzsche, não poderia ser motivo para desistir de viver, antes pelo contrário: deveria ser mais um motivo para dizer sim à vida. Para ele, o cristianismo contribuía para uma cultura da e para morte, ou pós-morte, o que, por conseqüência, tendia a fazer com que não enfrentássemos os desafios do presente, o único tempo que nos cabe viver e, através do qual, atuando no aqui e agora, podemos rearranjar as instituições historicamente produzidas, criando, ou podendo, uma civilização vitalista, de expansão sem fim de mais vida.


O cristianismo, com suas culpas e ressentimentos, portanto, constituía uma religião de rebanhos, de uma humanidade que se permitia arrebanhar-se, porque fugia de seu próprio destino mortal, em nome de uma pós-morte redentora.


Uma sociedade descristianizada


Os verbos deste artigo estão no pretérito imperfeito porque hoje vivemos no epicentro do desejo de Nietzsche. Chegamos finalmente a constituir uma civilização desculpabilizada e sem ressentimentos.


A era Nietzsche, a nossa.


E o neoliberalismo é nome político-econômico-cultural-ideológico da era Nietzsche em que vivemos.


A neoliberal era Nietzsche possui, como seu principal eixo ideológico-publicitário, a expansão dos direitos civis, os direitos de livre expressão dos corpos, das diferenças étnicas, sexuais, comportamentais.


Sob o ponto de vista sistêmico-acumulativo, constitui-se no interior de uma sociedade de consumo planetária, razão pela qual os direitos civis são seu eixo ideológico-publicitário, porque, para consumir, para que a sociedade de consumo transforme o desejo de consumir suas mercadorias reificadas, em necessidade real, em valores de uso, é de fundamental importância que nossa civilização abandone a culpa, o ressentimento e o castigo.


É inimaginável uma sociedade de consumo ressentida e culpada. É de fundamental importância, portanto, que construamos uma sociedade descristianizada, sem culpa para consumir, consumir, consumir.


O poder como repressor


Reside aí a relevância dos direitos civis, sem estes, sem a crença de que somos livres sexualmente, comportalmente, etnicamente, expressivamente, não é possível acionar o consumo desculpabilizado. Sem a crença na liberdade de expressão, é impossível a sociedade de consumo. Esta, nesse sentido, vive de alimentar essa crença, publicitariamente, ficcionalmente, cotidianamente.


Claro que o momento, digamos, epifânico, da neoliberal era Nietzsche, foi maio de 68. Bem mais que a rebelião da juventude, contra a autoridade, a seriedade patriarcal-burguesa, maio de 68 foi igualmente colonizado para inventar a juventude plena de direitos civis. Sem o jovem como protagonista dos direitos civis, o novo herói lírico dos tempos contemporâneos, não seria possível derrubar a civilização da culpa e do ressentimento.


Era necessário inventar a juventude e maio de 68 foi usado para ser o momento de irrupção da juventude, plena de direitos civis, na cena histórica mundial. Estamos obviamente diante do conceito de biopoder, de Michel Foucault.


Temos, ainda segundo Foucault, a mania de pensar o poder como repressor e , portanto, como aquele que realiza o castigo, que impõe a culpa e o ressentimento. Sob o ponto de vista do biopoder, de poder sobre e com a vida, o poder é antes de tudo Eros, pois utiliza a vida para domesticar, controlar, adestrar, numa palavra, fabricar um perfil humano necessário aos novos tempos, vale dizer, à sociedade de consumo.


A máquina tecnológico-imagética


A invenção da juventude cumpriu esse papel. A vitalidade sarada dos jovens foi colonizada a fim de esboçar o perfil heróico da sociedade de consumo como plena liberdade de expressão, entendida doravante como uma sociedade eternamente jovem, sem passado e sem futuro, marcada por um presente sem fim, logo inquestionável, sobredeterminado pelo consumo e pelo jovem. Ou, simplesmente, pelo publicitário e imaginário consumo de juventude eterna, como uma espécie paradoxal de cadinho de civis direitos alquímicos, aos quais todos devemos devotar nosso mais íntimos desejos de compra.


Sem passado, sem vida adulta e marcado pelo estilizado lírico-epopeico herói jovem, tendo como pano de raso e de fundo os direitos civis, esse jovem presente eterno da sociedade de consumo, com seus shoppings de novidades zumbíticas, porque sem memória, deveria varrer do mapa os direitos sociais, políticos e econômicos, doravante considerados anacrônicos e autoritários, além de sérios demais. Temos assim uma sociedade de consumo em que os direitos civis devem a tudo dominar e a tudo contaminar, de tal sorte que a economia também se torne direito civil, assim como a política.


Daí a crença de que dinheiro cria dinheiro, sem lastro no mundo real, no mundo do trabalho concreto, mundo por demais desagradável e igualmente anacrônico para o livre direito de consumir sem culpa. Coisa que o trabalho sempre lembra, culpa, basta considerar a lenda bíblica de Adão e Eva. Chegamos assim ao paraíso, ao livre direito de comer maçãs, sem o risco de sermos castigados pelo sério e vetusto Deus.


A financeirização do capitalismo contemporâneo surge como resultado direto dessa expansão jovem sem fim dos direitos civis.


Por sua vez, os meios de comunicação deveriam ser a máquina tecnológico-imagética de fabricação deste mito, a sociedade de consumo, tornando-a espetacular e colocando, no seu epicentro, os direitos civis e a juventude, como elementos de uma narrativa ficcional que tem no modelo americano, o american way of life, a referência a ser globalmente perseguida.


O impulso neoliberal despojado e americanizado


Mas o que fazer então com os 4/5 da humanidade que estão de fora desse modelo civilizatório e que devem ser usados e explorados para sustentá-lo? Simples: devem ser duramente reprimidos, chamados de terroristas, de autoritários, de anacrônicos, de modo que a verdadeira guerra dos tempos atuais não é entre países, mas entre os livres portadores de direitos civis, de consumir, e os perigosos terroristas que devem ser, como Matrix, os garantidores desse modelo civilizatório, para que não desmanche no ar.


Assim chegamos finalmente aos últimos modelos-formas-fôrmas consagrados de humor na TV brasileira, hoje.


Sem dúvida, constituem um típico de humor neoliberal, porque detém todos os traços acumulados da sociedade neoliberal sem culpa e arrogantemente plena de direitos civis a, belicamente, caçar e cassar tudo que signifique possibilidade de outro mundo, de direitos sociais, econômicos e políticos, agora usados e abusados como o lugar do deboche, do escracho e da corrupta anacronia, em nome dos narcísicos e estilizados direitos civis concentrados nas mãos de poucos.


Tudo isso começou na TV brasileira com o Pânico na TV, cujo primeiro programa veio ao ar, na RedeTV, em 2003, tendo como protagonistas jovens de classe média, alguns dos quais vestidos de terno e gravata como os neoliberais econômicos, os Chicago Boys, os quais, como gênios da raça, implantaram a primeira experiência neoliberal em um país, o Chile da década de 70, após a política de terra arrasada do golpe militar contra os direitos sociais, políticos e econômicos.


Na semana passada, por sua vez, inaugurou-se, na TV Record, outro programa de humor neoliberal, Os legionários, com Felipe Solari como heróico e sarado jovem, um Chicago Boy da cultura neoliberal, com seu auto-confiante e narcísicos trejeitos despojados, a própria encarnação classe mediana da rosticidade dos direitos civis: politicamente correto e ecologicamente consciente. Uma caricatura roqueira do amarican way of live, como os filhos de Eduardo Suplicy, os quais, não sem razão têm hoje um programa na TV que, não obstante ser mais interessante, é igualmente marcado pelo mesmo impulso neoliberal jovial despojado e americanizado.


Perfil bélico auto-confiante


Tudo para inglês ver. Não sem motivo ele, o Felipe Solari e seu grupo de ‘jovens criativos’ aparecem cantando em inglês, a língua oficial do neoliberalismo dos direitos civis grupalmente ampliados, além de ser a língua do modelo de jovem neoliberal, como uma mercadoria, copiada e imitada pela juventude neoliberal de todo o mundo dito civilizado, fabricada, tal jovem-mercadoria, nas fábricas estilizadas de roqueiros porra loucos, norte-americanas.


Quero, no entanto, deter-me no CQC, o neoliberal grupo de humor da TV Bandeirantes, pelo que esse grupo tem de pretensão bem-humorada de humor marcado pelo ímpeto moralista de denunciar as mazelas corruptas da política brasileira.


Parafraseando o texto de apresentação do grupo CQC, encontrável no sítio da TV Bandeirantes, afinal de contas são sete homens vestidos de preto, usando inseparáveis óculos escuros e tendo como principal marca o slogan: custe o que custar. Desde que não seja, é claro, o próprio emprego, garantido de antemão pelo venal papel neoliberal que cumprem, com humor e espírito bélico, bons soldados, da justiça dos direitos civis para poucos, que são.


São eles: Marcelo Tas, Rafinha Bastos, Marco Luque, assumindo a bancada, Danilo Gentilli, Felipe Andreoli, Rafael Cortez, Oscar Filho, além da oitava ‘custe o que custar’, Mônica Iozz, a metonímia às avessas, por ser uma espécie de mulher maravilha de tudo pela justiça, de um grupo composto por machistas super-homens, no jovem sarado e impositivamente universal perfil americano bélico auto-confiante, que costumam orgulhosamente exibir, como a quintessência do american way of life.


O Manifesto Futurista de 1909


À moda dos Chicago Boys, incorporam também, além do terno preto e dos óculos escuros, outro importante traço Frankenstein: a carrancuda auto-confiança militar,no estilo americano mesmo, como se fossem os bélicos promotores da democracia dos direitos civis,pelo bárbaro e inóspito mundo da corrupção política brasileira.


Não sem razão, a propósito, CQC é sigla para Close-quarters combat, um tipo de ação militar que tem como objetivo desarmar o inimigo pelas costas. CQC, portanto, é estratégia militar dotada de forte conteúdo sexual, de estupro. Uma jovem machista bélica técnica neoliberal de humor-estupro criado na Argentina, em 1995, com o nome de Caiga Quien Caiga, tendo sido também programa da TV portuguesa, Caia quem Caia, da chilena, Caiga quien Caiga; da italiana, Le Iene, países pertencentes à cultura neolatina.


Tratar-se-á, assim, de programas cujo inconsciente político, de base militar-estupral, tem como objetivo, representando o bélico protestante neoliberalismo anglo-saxão, moralizar as barbaridades anacrônicas, concupiscentes, pecaminosas, católicas e corruptas da ignorante e desprezível política dos países neolatinos? É o que parece, se considerarmos que em todos os programas os jovens de terno preto são igualmente americanizados e igualmente adoram demonstrar que são fluentes em inglês.


Reside aí talvez a arrogância expressa na rosticidade norte-americana dominante desses e nesses pretensiosos neoliberais e especulativos jovens, como portadores religiosos da boa nova modernizadora neoliberal, o auspicioso mundo de ilha da fantasia de direitos civis para poucos felizes bem-sucedidos, americanizados.


É incrível, a propósito, como a história se repete a um tempo como tragédia e farsa. O futurismo italiano, com seu líder Marinetti, propunha, no Manifesto Futurista de 1909, a mesma coisa: esmurrar a anacrônica cultura latina, a fim de que, agitando-a belicamente, não apenas esconjurar sua memória de luta por justiças, mas também prepará-la à força e à forca para se modernizar o mais rapidamente possível.


O espelho narcísico


Também não é circunstancial que o futurismo se fez mais presente em países periféricos, como a Rússia, a Itália, o Brasil, porque em todos esses países cumpria o mesmo objetivo: promover belicamente o espírito modernizador, acusando de anacrônico a tudo que não dialogasse com o último modelo tecnológico.


Observando o perfil dos bravos neoliberais jovens do CQC brasileiro, podemos perceber a mesma arrogância futurista não apenas no perfil de cada figura do grupo, mas também em todo o cenário do programa, todo ele em estilo futurista, entendido a partir da associação pretensiosa entre técnicas de montagem, geralmente ousadas, com artefatos tecnológicos reificados da atualidade. Tudo misturado e acrescido com narcísicos e arrogantes comportamentos orgulhosos e caricaturalmente civilizadores.


Assim, de modo futurista, os jovens belicamente propõem estuprar, no lugar do soco de Marinetti, o corrupto mundo da política brasileira. Eles são, como é de se esperar, formados pelo mundo da sociedade espetacular, porque partem do pressuposto de que tudo que a tevê privada brasileira condenou, como corrupto, de fato o é, independente se a justiça tenha condenado ou não; independente se existem outros pontos de vista,digamos, não televisivos.


Se a TV privada disse que José Dirceu é um corrupto, eles religiosamente terão essa versão, ou perversão como a única possível, onipresente, escrita nas estrelas, motivo pelo qual qualquer abordagem ou informação que tenha José Dirceu como referência, este último será sempre o ladrão-mor da política brasileira contemporânea, o mais corrupto e mafioso, como já ocorreu em alguns programas do grupelho – mistura de grupo mais espelho, o espelho narcísico da TV privada, refletido nos obscuros descaminhos de seus respectivos óculos escuros.


Que significa o terno e gravata pretos?


A mesma coisa vale para a própria política, no sentido amplo e restrito. Como sabemos, a tevê privada do Brasil – e de todo o mundo – parte da premissa de que a política é essencialmente corrupta. Pois bem, CQC assim age, desacreditando a política como atividade capaz de modificar a realidade humana. São incapazes de perceber a dignidade da grande política, no sentido de Gramsci, a política transformadora, a única que propõe outro modelo civilizatório, pós-capitalista, o lugar da barbárie.


É com esse espírito futurista neoliberal que o grupo vai abordar políticos no congresso e em outros lugares no Brasil e no mundo, com o preconceito televisivo de que tudo é pequena política, de que tudo é corrupção. Reside nesse preconceito, ou nesses preconceitos, a forma de abordagem com a qual o grupo vai arrogantemente procurar ‘estuprar’ os políticos profissionais, acreditando que são idiotas, ladrões, bobos, palhaços, anacrônicos. Assim fazem suas irônicas perguntas.


Caberia, para terminar, devolver outras tantas perguntas ao grupo, sugestão que faço aos políticos abordados, ou que venham a ser.


Eis algumas: fazer propaganda de um refrigerante multinacional como o da Pepsi, inclusive pessoalmente, entornando pela goela tal refrigerante, não é corrupção? Não estarão vendendo, como saudável, um refrigerante que é puro impuro veneno publicitário, um narcótico? Será que eles não se envergonham de trabalhar, de receber seus respectivos salários, ajudando a engordar os cofres do escandaloso oligopólio – considerado crime pela Constituição Federal – das TVs privadas brasileiras? Por que não abordam os políticos do PSDB, questionando sobre as escandalosas privatizações que foram feitas sob o governo de FHC? Que significa esse terno e gravata pretos? Esses óculos escuros? Por que não perseguem e acusam os corruptores das multinacionais?


E por aí vai…

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Professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal do Espírito Santo, ensaísta, poeta e escritor