Tuesday, 14 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Relato de uma ocorrência de plágio

Eu acabara de tomar um vinho delicioso – mais pela companhia do que pela bebida – com o reitor da Estácio de Sá, o professor Gilberto Mendes de Oliveira Castro, e com o chanceler da universidade, Nelson Mello e Souza.

Estávamos no shopping Rio Design (na Barra da Tijuca, no Rio, é tudo em inglês, decerto para imitar Miami, mas lá o espanhol é dominante), em cuja entrada há lindos versos do poeta Affonso Romano da Sant’Anna na parede, saudando – em bom português! – os que passam, e, como sempre, demos um pulinho na Livraria Argumento, onde trocamos presentes.

Sobre o balcão, ao lado do caixa, havia pequena pilha de um livro pequenino, A fascinante origem das frases populares, da Editora Garamond, sem autoria na capa. Interessado no tema, comprei um exemplar.

O dia parecia muito apropriado a um homem de letras, mas a alegria durou apenas até ao anoitecer. Já deitado, lendo com a luz do abajur, comecei a ter meus sentimentos desarrumados.

Acabei por desabafar, no dia seguinte, com um querido amigo, o jornalista e escritor José Nêumanne Pinto, editor de A Girafa: ‘Fomos roubados, Nêumanne’. O livrinho em questão transcrevia trechos inteiros, páginas e seções completas de meu livro A Vida Íntima das Frases e de trechos de De Onde Vêm As Palavras, ambos atualmente editados pela A Girafa, o segundo dos quais em 14ª edição, já reimpressa.

Nêumanne passou a ligação a Alessandro Veronesi, o outro proprietário de A Girafa. E ambos me disseram que o remédio seria medida judicial que o autor deveria tomar, ainda que a editora, naturalmente, também lesada, fosse parte da ação, não lhe cabendo, porém, a iniciativa.

Vários outros amigos cujos juízos muito prezo me aconselharam o mesmo, mas um deles me disse o seguinte: ‘Você está com 57 anos: prepare-se para freqüentar o Judiciário até a idade bíblica dos 70. Em vez de ir aos tribunais, conte o que houve, quem sabe os outros casos também apareçam, pois, ao contrário do que você pode pensar, isto não é muito raro, não’. E acrescentou: ‘A mídia não substitui o Judiciário, mas ajuda muito’. Más notícias!

Dentadas do tigre

Sou um homem de papel, escrevo, leio e vivo no meio de livros. E eis que recebo de Ivan Pinheiro Machado, da LP&M, também meu editor de contos recolhidos em A primeira coisa que botei na boca, da sua bela coleção pocket books, o livro de um contista e ensaísta que muito prezo, Sérgio Faraco: Histórias Dentro da História.

É mais um lançamento esquecido por nossa imprensa, que parece empenhada num projeto de ocultar os autores brasileiros, sendo o maior emblema do descaso a Veja, a maior revista semanal de informação, especializada desde 1993, mais ou menos, em não informar nada em matéria de livros, por mais pertinentes ou importantes que sejam os livros e os autores lançados. E que há tempos trocou o verbo INFORMAR pelo verbo DENUNCIAR, de preferência sem provas! Outro dia vi ali a foto do pediatra de minha única filha, há algum tempo deputado federal, denunciado não sei como o quê! Vai levar mais do que a idade bíblica dos setenta para obter alguma reparação, caso recorra ao Judiciário.

Assim é o Brasil… O livro de Sérgio Faraco, porém, me foi providencial: parece ter sido enviado de propósito, sem que editor e escritor soubessem do ocorrido.

É que Sérgio Faraco intitula um dos capítulos de ‘As dentadas do tigre’. Nele explica como Shakespeare plagiou Plutarco em Júlio César; um romance de Matteo Bandello e um poema de Arthur Booke em Romeu e Julieta. Aliás, os versos de Booke têm o título de ‘A trágica história de Romeu e Julieta’

Experiência dolorosa

O plágio é antigo vício da literatura inglesa, sendo uma de suas principais vítimas Geoffrey Chaucer, mas este também é velho plagiário de produções italianas e francesas.

George Gascoigne copiou Jocasta, livro homônimo de Ludovico Dolce, plagiando também Ariosto em Os Supostos.

Robert Greene copiou Boccaccio, apropriando-se também de A história de Orlando Furioso, apenas um ano depois da publicação da tradução inglesa. Provavelmente dispensou o original e se serviu da tradução para roubar o colega de letras.

Robert Southwell, nisto imitando o francês Malherle, roubou o italiano Luigi Tansillo, mudando apenas o título: de Lágrimas de São Pedro para As Lamentações de São Pedro. Shakespeare foi vítima de plágio do próprio filho bastardo, William Davenant, em Macbeth de Davenant. Abandonado pelo pai no testamento, o filho confiscou parte do que lhe era devido…

Na Espanha, um dos casos mais famosos é o plágio de Dom Quixote, em que Cervantes foi roubado por Alonso Fernández Avellaneda, provavelmente pseudônimo de Lope de Vega, Tirso de Molina ou Ruiz de Alarcón. Ou dos três em parceria. De todo modo, o falso Dom Quixote é muito bem escrito e rivaliza com o outro em qualidade literária.

Paremos por aqui. Quem quiser mais exemplos, vá ao ensaio de Sérgio Faraco.

Meu livro agora plagiado não é romance. Neste caso, minha experiência dolorosa deu-se com a pirataria editorial. Foi com Avante Soldados Para Trás, indicado como leitura em alguns vestibulares. Não chegaram ao cúmulo de omitir a autoria, mas desconfio de que o número de cópias ilícitas daria outras nove edições. Ou mais.

Sentido original

Quero reconhecer, de público, como já o fiz em nota à imprensa [ver abaixo], que encontrei na Garamond, por meio do editor Ari Roitman, um profissional disposto a minimizar prejuízos e sofrimentos. Não tenho por que não acreditar no que declarou: também ele e a editora Garamond foram enganados pelo plagiador, cujo nome não aparece na capa.

O Brasil vive séria crise de ética. Que o diga a novela Belíssima, que apresentou malfeitores consagrados pelo público. Não os impôs; propôs tais personagens. E o público os endossou. Que o digam os mensaleiros em campanha para reeleição, depois de absolvidos por seus pares, nisto prejudicando colegas de agremiação partidária que fazem de tudo para evitá-los, mas não conseguem, pois a cara-de-pau dos correligionários só não é maior e mais sólida do que seu descarado oportunismo.

Os plágios referidos sumariamente por Sérgio Faraco em seu belo livro ocorreram quando os direitos de autores e editores não estavam definidos e garantidos como hoje.

Em resumo, A Vida Íntima das Frases e De Onde Vêm as Palavras têm dono. É o autor deste artigo.

Vivo de ensinar e de escrever há algumas décadas, pois sou escritor e professor. Quem me roubou, roubou o meu trabalho. Levei muito tempo, por exemplo, para rastrear a autoria e o contexto em que aquelas palavras e frases foram criadas e proferidas.

Gosto de recuperar o sentido original das palavras. O grego plágios designa a coisa oblíqua, que não está em linha reta, mas o latim plagium, adaptação do vocábulo grego, já o tipifica como crime.

***

Nota da Garamond

A Editora Garamond comunica ao público que está retirando de circulação o livro recém-publicado A fascinante origem das frases populares.

Foi constatado que, à nossa revelia, a obra plagiou os livros A Vida Íntima das Frases, nas livrarias desde 1997 (copyright e edição atuais da Editora A Girafa: São Paulo, 2003, 248 páginas) e De Onde Vêm As Palavras, nas livrarias desde 1997 (copyright e edição atuais da Editora A Girafa: São Paulo, 14ª edição, 2004, 847 páginas), do escritor Deonísio da Silva, a quem aprendemos a respeitar e admirar, violando assim seus legítimos direitos autorais.

Deixamos de público nosso pedido de desculpas ao escritor e à sua editora, A Girafa, pelos eventuais danos causados pela publicação, comprometendo-nos a tomar as medidas cabíveis em relação ao compilador da referida obra que nos ocultou a autoria dos textos de Deonísio Silva. [Rio de Janeiro, 13 de julho de 2006, Ari Roitman]

***

Nota de Deonísio da Silva

Tive uma surpresa desagradável: constatar que meu livro tinha sido plagiado e publicado por editora de renome, responsável por tantos livros importantes, alguns de autores amigos meus, pois tenho apreço intelectual e respeito por Ari Roitman, uma referência de ética e competência no meio editorial.

Por isso, antes de qualquer medida judicial que me garantiria a proteção dos direitos autorais, levantei a hipótese, que se comprovou legítima, de que também a editora Garamond tinha sido enganada, e contatei Ari Roitman para os indispensáveis entendimentos sobre a questão.

E veio a surpresa agradável. O comunicado da Editora Garamond mostra que entre pessoas de bem os conflitos podem ser tratados por meio de diálogos sinceros, sem que autor e editora prejudicados tenham tido a necessidade de ir aos tribunais, como o personagem de uma das frases clássicas, Ainda Há Juízes em Berlim, estudada em A Vida Íntima das Frases, pois certamente ainda há juízes – e advogados! – no Brasil, muitos dos quais, também autores de livros importantes, capazes de discernir entre original e plágio. [Rio de Janeiro, 13 de julho de 2006, Deonísio da Silva]

******

Doutor em Letras pela USP, é professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra