Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Do presidencialismo de coalizão ao parlamentarismo de coação

(Imagem: Gerd Altmann por Pixabay)

Uma quantidade considerável de livros, artigos, notícias, reportagens investigativas, inquéritos policiais, processos administrativos e penais, ações de improbidade administrativa, entre outros elementos, aponta para uma prática comum em todos os governos recentes e nos mais vetustos. A obtenção de apoio político no Congresso Nacional (e o fenômeno se estende para as Assembleias Legislativas, Câmara Distrital e Câmaras de Vereadores) depende, e dependia, da oferta de postos de Ministro de Estado, cargos comissionados na estrutura da Administração Pública, liberação de emendas orçamentárias, favores e medidas fisiológicas de várias naturezas. Esse “sistema” ou “modelo” político ficou conhecido pelo pomposo nome de “presidencialismo de coalizão”, a partir do trabalho do sociólogo Sérgio Abranches.

Eis alguns registros públicos (entre dezenas de outros) que demonstram a correção das últimas considerações: a) “União Brasil quer manter Codevasf e comandar Sudene em troca de apoio a Lula. Lula vive impasse com União Brasil sobre cargos a serem oferecidos para garantir apoio em votações na Câmara”; b) “Partidos que apoiaram Bolsonaro chantageiam Lula por cargos. O toma lá, dá cá de sempre”; c) “A promiscuidade documentada: a planilha que mapeia os interesses ocultos no GDF. (…) A promiscuidade partidária entre a Câmara Distrital e o Governo do Distrito Federal cega o eleitor brasiliense, que acredita inocentemente na independência de seus representantes eleitos”; d) “Lula abre ‘porteira’ de cargos a União Brasil e MDB para ganhar aliados e barrar CPI; e) “Governo Lula abre mão de verba para Lira distribuir emendas até a deputados da oposição”; e) “O vocábulo governabilidade consolidou-se como uma espécie de abracadabra para a caverna de Ali-Babá. Juntam-se hienas, raposas, aves de rapina, abutres e roedores de toda espécie. E anotam na tabuleta da porta: ‘Base Aliada’. Sob Lula 3, montou-se um esquema muito parecido com o que havia na gestão Bolsonaro. A diferença é que o ‘toma lá’ ficou mais caro”; f) “No toma lá, dá cá com o Congresso, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai começar a transferir bilhões de reais do caixa federal para aumentar a base de apoio, sem qualquer transparência”; g) “Em 2005, no inquérito que investigava a corrupção nos Correios, a PF já registrara que, ‘ao longo os anos, vem ocorrendo, tanto nos Correios quanto em outras empresas estatais do país, uma espécie de ‘loteamento’ dos cargos em comissão a pessoas dos mais diversos matizes políticos que se alternam no poder”; h) “Ao longo dos últimos anos foi se construindo um padrão de relação entre Congresso e Executivo que visou garantir verbas públicas para alimentar 513 deputados e 81 senadores, que acabam funcionando como empresas individuais. Um modelo que na ponta impediu a realização de política com P maiúsculo, que virou entrave à solução dos problemas reais da população”; i) “Lula negocia mais dinheiro para o centrão em meio a reforma ministerial. Planalto e cúpula do Congresso fazem acerto envolvendo R$ 2 bilhões para turbinar pastas e órgãos que canalizam emendas”; j) “Gaspari diz que Arthur Lira avacalha a Câmara ao querer a Caixa de porteira fechada. Jornalista criticou o fisiologismo defendido abertamente pelo parlamentar” e k) “Bancada do PSD empareda Padilha por cargo e ameaça ministra: ‘se a gente dançar, ela dança também’. Deputada Laura Carneiro falou com ministro da articulação política no Planalto ameaçando derrubar a ministra da Saúde, Nísia Trindade; PSD quer cargos na Funasa”.

Merece ser sublinhado que os procedimentos escusos podem mudar de forma ao longo do tempo e em função das descobertas e desarticulações institucionais. O que antes tomava a forma de A pode ser mantido assumindo a forma de B. Tancredi, personagem do famoso romance “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, alertou: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.

Essas mutações na forma dos esquemas de corrupção envolvendo o Parlamento não passaram despercebidas pela ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Rosa Weber, na condição de relatora da ADPF n. 854/DF. Afirmou a ilustre magistrada em seu voto: “41. Põe-se em questão a facilidade com que esquemas de corrupção de tamanha abrangência surgem, propagam-se e, mesmo após seu declínio, reestruturam-se; envolvem servidores e autoridades públicas de diversas unidades da Federação; e, ainda assim, conseguem subsistir mesmo diante da atuação fiscalizatória dos sistemas de controle e acompanhamento orçamentário. (…) 51. Na era dos esquemas tipo PC Farias, falava-se em fantasmas, alusão à ocultação da presença por meio de empresas imateriais, identidades incorpóreas e operações espectrais. Na época da operação sanguessuga, evidenciava-se o caráter parasitário das condutas. Os envolvidos aderiam ao orçamento absorvendo recursos por meio de engenharia burocrática sem revelar a própria existência. Atualmente, a política patrimonialista, reinventando-se, instrumentaliza formas e fórmulas jurídico-contábeis para conferir ares de oficialidade a conteúdo inoficioso, aparência de institucionalidade ao que não encontra amparo na ordem constitucional. Como se sabe, a liturgia, por si só, não torna sacro o que é secular na essência”. 

Nesse sentido, não obstante a declaração de inconstitucionalidade do “orçamento secreto” do governo Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal, a distribuição de recursos orçamentários entre parlamentares e a ausência de transparência persistem no Governo Lula 3, conforme inúmeras matérias jornalísticas.

Parece fora de dúvida que as lideranças do Poder Legislativo “sempre” reuniram força suficiente para exigir contrapartidas, republicanas ou não, para hipotecar apoio às medidas de interesse do Executivo, independentemente do nome e da inclinação político-ideológica do mandatário maior da Nação. 

A sociedade brasileira é testemunha de que o chamado “presidencialismo de coalizão” produziu um altíssimo nível de deterioração da ação política e corrupção em larga escala. Os escândalos e os mecanismos voltados para a malversação de recursos públicos se sucederam com indesejável frequência. 

Ocorre que o ruim ficou pior. Existem vários indícios e avaliações, feitas por jornalistas, políticos e cientistas, apontando para a construção de uma nova, e mais nefasta, conformação das relações entre o Executivo e o Legislativo. Trata-se do que pode ser chamado de “parlamentarismo de coação” (ou chantagem, mesmo).

Esse novo momento (ou “modelo”) se caracteriza: a) pelo aumento da força política do bloco fisiológico/clientelista no Parlamento; b) incremento da organicidade da atuação do bloco fisiológico/clientelista. Percebe-se uma movimentação mais articulada e uniforme, inclusive no reconhecimento de quem são os “líderes” do grupamento parlamentar; c) clara visibilidade da pressão política sobre o Executivo. Até a grande imprensa é utilizada para mandar “recados” aos gestores e deixar muito claro o que é preciso para que os “projetos de interesse do governo” tramitem com o mínimo de chances de aprovação e d) utiliza-se uma linguagem cifrada que qualquer pessoa com meio neurônio é capaz de entender. A reclamação contra a falta de “articulação político-parlamentar do governo” é facilmente traduzida como insuficiência na distribuição de cargos e verbas para certos integrantes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Ilustrando as considerações anteriores, para além de qualquer dúvida, vale conferir uma entrevista do Deputado Federal Washington Quaquá, Vice-presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT). Disse o parlamentar (fonte: noticias.uol.com.br): “É só estabelecer uma cota. Vai ser R$ 50 milhões por deputado a cada ano? Define isso. O cara que é oposição tem o benefício de poder falar mal do governo à vontade. Ele ganha voto nesse nicho. E o cara que é do governo, qual é o benefício dele? É poder governar. É poder realizar coisas na base eleitoral dele. Acho mais do que justo, mais do que tranquilo./Com R$ 18 bi, R$ 20 bi, R$ 25 bilhões resolve essa parada. Não é com ministério. Claro que ministério faz parte, mas do ponto de vista de querer governar junto, participar da política pública./Eu estou lá todo dia, com a base no Congresso. O que contemplará a base e formará a maioria para governar são as emendas./Se o governo der R$ 50 milhões para cada deputado do União Brasil, 90% deles vão votar com a gente./Mas precisa primeiro entender o presidente [Arthur] Lira como um fenômeno político brasileiro. Hoje, o presidente da Câmara é o presidente do sindicato dos parlamentares, ele representa os interesses dos parlamentares. Não tem mais um Ulysses Guimarães, que defendia teses. Hoje você tem um cara que defende o mandato dos deputados. Lira faz isso muito bem”.

O termo “chantagem” sintomaticamente é usado com frequência crescente para caracterizar as relações entre o Executivo e o Legislativo no plano federal. Recentemente, um editorial do jornal o Estado de S. Paulo (Estadão) qualificou expressamente as relações atuais entre o governo e o Parlamento (boa parte dele) como uma verdadeira chantagem. Foi dito, com todas as letras: “Governo abusa da edição de medidas provisórias, mas isso não é razão para chantagem de Lira. Requisito constitucional protege o interesse público, não barganhas privadas (…) É urgente encontrar uma via de mais equilíbrio nas relações entre Executivo e Legislativo que passe longe da simples chantagem”. Estas são algumas outras menções (são inúmeras): a) “O que Arthur Lira está fazendo é chantagem com o governo” (fonte: brasildefato.com.br); b) “Arthur Lira sacode Brasília com ameaças e chantagem. Seu poder está a serviço do lobby empresarial contra Lula” (fonte: cartacapital.com.br); c) “Ao dar ministério a Fufuca, Lula mostra a Lira que chantagem funciona” (fonte: oglobo.globo.com); d) “O método Lira de chantagem” (fonte: Ponto de Partida); e) “Na base da chantagem Arthur Lira é um novo Eduardo Cunha com mais poder” (fonte: noticias.uol.com.br) e f) “MP dos Ministérios é aprovada na Câmara sob chantagem de Lira” (fonte: midianinja.org).

Na raiz desse quadro dantesco está, como foi destacado, a eleição de um grande número de parlamentares por intermédio dos mais deletérios expedientes fisiológicos e clientelistas. Quem compra votos ou troca o sufrágio por favores de várias naturezas torna-se “dono” de um mandato parlamentar (importante espaço de poder). Sem qualquer tipo de satisfação ao eleitor ou controle social, as negociatas mais tenebrosas acontecem livremente e são até noticiadas pela grande imprensa (nas facetas institucionais, como nomeações, liberações de verbas, etc).

Essas e muitas outras mazelas presentes na vida nacional somente serão superadas com a inserção dos interesses populares no centro da ação política. Conscientização, organização e mobilização dos interesses da maioria da sociedade precisam efetivamente animar a ocupação dos principais espaços de poder. Infelizmente, estamos muito longe desse desejável quadro. 

Aliás, a situação atual é mais preocupante do que se pode imaginar. De um lado, temos uma forte mobilização de importantes segmentos das classes médias sob a bandeira de um patriotismo desprovido de real significado e facilmente capturado para o que existe de pior em termos de autoritarismo e elitismo. De outro lado, observamos uma significativa atuação política de setores progressistas da sociedade atraídos por um projeto que se autoproclama como popular, mas não passa de uma engenhosa administração do status quo (os mecanismos e instrumentos estruturais viabilizadores e reprodutores de profundas injustiças, opressões e discriminações). 

Infelizmente, nos tempos atuais, resta pouco espaço para a construção de um ambiente pautado por uma participação visceralmente popular de alta energia. 

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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional