Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O custo de mostrar o rosto

(Líder indígena Sarapó Ka’apor – Foto: Andrew Johnson)

“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto”(Carta de Pero Vaz de Caminha).

Quando os portugueses chegaram ao Brasil, em 22 de abril de 1500, enxergaram na população indígena a inocência daqueles que não tinham inimigos, porém, pouco tempo depois, eles se tornariam um impedimento para o projeto colonialista e assim segue até os dias atuais. 

Lideranças indígenas que ousam mostrar os rostos para protegerem seus territórios, seu povo e a terra, acabam se transformando em alvos daqueles que querem explorar para benefício próprio os locais que antes eram compartilhados entre os povos originários. 

Em setembro de 2022, o líder indígena Sarapó Ka’apor morreu, de acordo com as autoridades, de forma natural, mas os indígenas suspeitam de envenenamento, já que ele era um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento de sistemas de autodefesa indígena no país, estava sob constante ameaça e fazia parte do Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos do Maranhão desde 2015, juntamente com outras três lideranças Ka’apor.

Em 2020, também no Maranhão, uma liderança indígena Guajajara foi vítima de homicídio a tiros, tornando-se a segunda ocorrência desse tipo em apenas cinco meses. Zezico Rodrigues Guajajara, que desempenhava o papel de líder na Terra Indígena Araribóia e também era professor, foi uma das vítimas dessa violência. 

Apenas alguns meses antes, em novembro de 2019, na Terra Indígena Araribóia, Paulo Paulino Guajajara, conhecido como Lobo Mau, também foi vítima de homicídio a tiros. Paulino desempenhava o papel de guardião da floresta, encarregado de monitorar e denunciar invasões na selva, uma das atividades mais perigosas do Brasil nos dias de hoje.

Uma liderança da etnia Tembé foi morta no Pará, em 2021. De acordo com relatos de indígenas, Isac Tembé, de 24 anos, teria sido vítima de homicídio cometido pela Polícia Militar, o crime ocorreu em uma região de caça próxima a uma fazenda localizada no nordeste do estado. 

Também em 2022, Vitorino Sanches, membro do povo Guarani e Kaiowá, foi vítima de uma emboscada na região de Amambai, no estado de Mato Grosso do Sul. Nesse incidente, pistoleiros dispararam mais de 35 tiros contra o veículo em que ele se encontrava. Esse teria sido o segundo ataque direcionado a Vitorino em pouco mais de um mês. O primeiro ocorreu quando o seu veículo foi alvejado por mais de 10 tiros.

Além das mortes encomendadas dentro do agro banditismo e disputas por terras, a negligência do governo federal durante a presidência de Jair Bolsonaro, também levou a população indígena à morte. 

Essa negligência resultou em uma crise humanitária no território Yanomami, situado na região Amazônica. O número de óbitos por desnutrição entre os indígenas registrou um aumento de 331%. 

O relatório de violência contra os povos indígenas demonstrou que no período de 2019 a 2022, 177 indígenas perderam a vida devido à desnutrição. Os números indicam que as categorias mais afetadas pelos óbitos por desnutrição foram as crianças e os idosos yanomamis. Dos 41 falecimentos por desnutrição em 2022, 25 envolveram indígenas com mais de 60 anos de idade, enquanto 11 foram crianças com idades entre zero e nove anos.

Os dados coletados nos últimos quatro anos, provenientes dos relatórios do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e de informações atualizadas de fontes oficiais, revelam o seguinte:

  • No que diz respeito aos conflitos relacionados aos direitos territoriais, que englobam ataques, pressões e disputas em territórios indígenas, foram registrados 407 casos.
  • Quanto a invasões de terras, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio indígena, foram contabilizados 1.133 casos.
  • No que tange a crimes contra as pessoas, focando apenas nos assassinatos de indígenas, houve um triste registro de 795 óbitos.
  • Por negligência das autoridades públicas, um número chocante: 3.552 crianças indígenas com até quatro anos de idade perderam a vida ao longo desses quatro anos.

Funai, Ibama, Incra e os Ministérios da Justiça, do Meio Ambiente, da Agricultura e das Minas e Energia, órgãos que diretamente ou indiretamente se relacionavam com as comunidades indígenas, foram escolhidos representantes “sem conhecimento das referidas áreas e sem nenhum compromisso com o respeito aos direitos desses povos”, afirma o relatório do Cimi (página 17). 

Também foi durante o governo Bolsonaro que a Funai tentou regularizar a grilagem de terras por meio da instrução normativa nº 9/2020, que mandava retirar dos cadastros fundiários do país as terras indígenas em processo de demarcação.

A Instrução Normativa n° 09 traz elementos com raízes ditatoriais que visam submeter os povos indígenas à assimilação, em sentido contrário ao que concebe a Constituição Federal de 1988. A medida desconsidera todo o arcabouço legal da política indigenista do próprio Estado em consonância com tratados internacionais de proteção aos direitos dos povos indígenas, colocando-os sob tutela de uma única pessoa, o presidente da Funai, que passa a reconhecer como terras indígenas apenas as terras já regularizadas, cujo procedimento administrativo de demarcação está concluído. Esta norma favorece a propriedade privada incrustada dentro das terras indígenas, que são bens do Estado Brasileiro, conforme o que determina o Artigo 20 da Constituição Federal de 1988 (Nota do Cimi contra a instrução normativa). 

Os constantes ataques contra a população indígena demonstram que no Brasil o crime e a impunidade saem vitoriosos. E não são somente os indígenas que sofrem com esses abusos. Em 5 de junho de 2022, durante uma expedição pelo Vale do Javari, a segunda maior terra indígena do Brasil, localizada a oeste do Amazonas, ocorreu o assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.

Em outubro desse ano, o juiz decidiu levar os réus (Amarildo da Costa de Oliveira, Oseney da Costa de Oliveira e Jefferson da Silva Lima) a júri popular após o parecer do Ministério Público Federal (MPF), que fez o pedido à justiça. Em nota, o Ministério Público afirmou que Bruno foi morto com três tiros (…), já Dom, foi assassinado apenas por estar com Bruno. 

No Brasil, o custo de ser uma liderança e da defesa do território em que se vive, é muito alto. Os indígenas pagam com a vida que acaba tingindo de vermelho os solos que tanto protegem. Afinal de contas, seria melhor se perdessem a inocência, mantivessem as vergonhas desnudas e os rostos cobertos?

Referências:

Carta de Pero Vaz de Caminha. 1 de Maio de 1500

Disponível em: Carta-de-Pero-Vaz-de-Caminha-transcricao.pdf (dglab.gov.pt)

Relatório de violência contra os povos indígenas

Disponível em: relatorio-violencia-povos-indigenas-2022-cimi.pdf

Nota do Cimi contra a instrução normativa 09/2020

Disponível em: Nota do Cimi contra a Instrução Normativa nº 09/2020 da Funai | Cimi

***

Nadini de Almeida Lopes é Mestre e Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), doutorado em co-tutela com a Faculdade de Letras da Universidade do Porto pelo Programa Doutoral em Informação e Comunicação; jornalista e professora da pós-graduação da Belas Artes, e membro do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, do Instituto de Estudos Avançados da USP