
(Foto: Reprodução de imagem do trailer do filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles)
Duas semanas atrás, escrevi um artigo para o Observatório da Imprensa, abordando o centenário do Grupo Globo, enfatizando as relações do conglomerado de mídia da família Marinho com a esquerda e a extrema direita. Apontei que, no presente contexto, as maiores críticas ao Grupo Globo têm vindo da extrema direita e sua face mais barulhenta: o bolsonarismo. Enquanto isso, o campo progressista, em sua maioria, temendo ser taxado como “bolsonarista”, tem sido guiado pelos discursos do Grupo Globo e sua (falsa) campanha em defesa da democracia (burguesa) contra o fascismo.
Quatro dias antes da publicação do texto citado acima, concedi uma entrevista para o canal do YouTube “Live Cinegnose 360”, abordando como a esquerda brasileira tem abandonado históricas pautas combativas e se adaptando completamente ao status quo. Logo após minha entrevista, o jornalista Wilson Ferreira, apresentador do canal, fez uma interessante análise sobre o filme Ainda Estou Aqui, produzido pela Globoplay. Segundo Wilson, uma obra cinematográfica deve ser interpretada além de seu conteúdo, isto é, como um produto, levando-se em conta a linguagem, o contexto histórico e as relações sociais e de classes aos quais está inserida.
Uma leitura de Ainda Estou Aqui somente pelo conteúdo revela um filme que alerta para que os horrores da ditadura militar não voltem mais. Por isso, temos que defender a “democracia”. Porém, Wilson adverte que há outros planos em uma análise cinematográfica. Como sabemos, o Grupo Globo passa por uma das piores crises de sua centenária história. Lembrando o conceito de “ecologia de mídia”, formulado por Marshall McLuhan, a internet abalou as estruturas dos outros veículos de comunicação, como rádio, jornal impresso e televisão.
Nesse cenário, o Grupo Globo, para sua própria sobrevivência, deve diversificar suas atividades, por meio da anteriormente citada plataforma Globoplay. Assim, tem investido no streaming e no mercado internacional de filmes. E o carro-chefe dessa nova empreitada? O filme Ainda Estou Aqui.
De acordo com Wilson Ferreira, o longa de Walter Salles tem todas as características do padrão hollywoodiano, ou seja, foi feito sob medida para fazer sucesso no exterior, sobretudo nos Estados Unidos. “É o que eu chamo de ‘linguagem internacional popular’: uma certa visibilidade, fotogenia, um tipo de narrativa, maneira de trabalhar plano de câmera, estilização, estereotipagem, signalização, corte e edição. Se o filme atende a esse padrão, é aceito pela distribuidora internacional (no caso de Ainda Estou Aqui, a Sony Pictures)”, afirmou Wilson Ferreira, na live em seu canal do YouTube.
Nesse sentindo, Ainda Estou Aqui, seguindo a “linguagem internacional popular”, trabalha rigidamente com um esquema de “quebra da ordem e retorno da ordem”. Nos primeiros trinta minutos de filme, é mostrada a rotina da família Paiva, buscando atrair a empatia do público. Posteriormente, a “ordem” é quebrada, quando o chefe da família, Rubens Paiva, é levado pelas forças policiais. Por fim, há o “retorno à ordem”, com Rubens Paiva legalmente sendo reconhecido como morto. “O filme termina exatamente como começou: com a foto do ano da família. Restabelece a ordem”, ressaltou Wilson Ferreira. Além disso, a fotografia amarelada do filme tem a ver com o estereótipo visual hollywoodiano sobre longas-metragens ambientados na América Latina, remetendo a paisagens áridas e quentes, um clima “exótico”.
Ironicamente, o reconhecimento internacional que Ainda Estou Aqui tanto busca está nos Estados Unidos, cuja indústria cultural – ao vender o american way of life como modelo a ser seguido – teve grande impacto na classe média que apoiou a ditadura militar denunciada no filme.
Já grande parte da esquerda brasileira, adoecida que está pelo conteudismo (a doença infantil da comunicação) – consegue enxergar apenas o conteúdo de um produto cultural, esquecendo-se do contexto e das relações sociais e de classe que envolvem a fabricação do produto. Desse modo, tem comemorado com raro entusiasmo o sucesso de Ainda Estou Aqui na principal nação imperialista do planeta.
Por outro lado, Ainda Estou Aqui, sendo uma crítica à ditadura militar, tem sido objeto de ataques bolsonaristas, que, no auge de seus delírios habituais, negam o caráter autoritário desse regime. Consequentemente, o filme de Walter Salles, no aspecto simbólico, se tornou a “cereja do bolo” da campanha da (falsa) defesa da democracia (burguesa) contra o fascismo, capitaneada pelo Grupo Globo. Ou seja, não há propaganda melhor para atrair a esquerda atualmente do que a oposição bolsonarista a uma determinada pauta. Nem que para isso o campo progressista (incluindo a chamada “imprensa alternativa”) promova um filme produzido pelo grupo de comunicação que mais mal fez à classe trabalhadora brasileira ou vibre com um reconhecimento vindo do país que é o maior inimigo dos povos oprimidos.
Haja Síndrome de Estocolmo!
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Francisco Fernandes Ladeira é professor da UFSJ, Doutor em Geografia pela Unicamp e Especialista em Jornalismo pela Faculdade Iguaçu.