Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Julia Murat e Sol Miranda conversam sobre a realidade social brasileira

(Foto: Clem Onojeghuo/ Pexels)

Depois do anúncio do primeiro prêmio da competição internacional do Festival de Cinema para o filme Regra 34, Julia Murat e sua equipe concederam uma coletiva para a imprensa. Talvez, para os não brasileiros, tenha passado despercebida ou tenha sido minimizada a frase de Julia sobre o risco de um golpe de estado no 7 de setembro. Um dia antes de ter sido premiada, após a projeção do seu filme e de uma entrevista de sua equipe, Julia me falara desse risco e me aconselharam a adiar qualquer viagem ao Brasil: “vamos ter pelo menos uns seis meses de agitação”. Ela também não estará mais lá: vai fazer um mestrado de dois anos de cinema nos Estados Unidos.

Na sexta-feira, dia 12, o jornal francês Libération dedica cinco páginas à campanha eleitoral no Brasil, com a manchete “A democracia em jogo”, com ampla reportagem da correspondente Chantal Rayes. O jornal Le Figaro, também de Paris, repercutiu igualmente as mobilizações do 11 de agosto, com a leitura da Carta às brasileiras e brasileiros, em defesa da democracia. E o alemão Der Spiegel publicou uma entrevista sob o título “Vivemos um momento de conflito”, com o ex-presidente Michel Temer, no qual ele expressava seus temores de um golpe antes das eleições no Brasil.

É nesse contexto político brasileiro, de conhecimento da direção do Festival, a premiação do filme Regra 34 e a razão do prêmio ter sido acompanhado de uma menção de apoio ao cinema brasileiro. Uma espécie de mensagem aos intelectuais e artistas brasileiros do tipo “vocês não estão sós”. Esse tipo de mensagens era comum durante a ditadura militar.

Uma delas, logo depois do golpe, foi por ocasião do primeiro festival do teatro universitário de Nancy, em 1965, quando ganhou a peça Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, do Teatro Universitário da Universidade Católica, TUCA. E, logo depois, em 1967, foi Terra em Transe de Glauber Rocha, o primeiro filme brasileiro a ganhar o primeiro prêmio, na competição internacional do Festival de Locarno. Regra 34 é agora o segundo filme com o mesmo prêmio; todas as honras a Julia Murat.

Sol Miranda e Julia Murat falam do filme e da realidade social brasileira

Sol Miranda – Quando me convidaram para o projeto do filme, meu primeiro projeto audiovisual como atriz, me pareceu um tanto contraditório com minha realidade. Na época, eu estava dirigindo um fórum de discussões sobre as artes negras no Rio de Janeiro, uma mediação de políticas públicas entre ONGs e o poder público. Havia um debate sobre negritude, feminismo e o lugar, o protagonismo dos artistas negros naquela realidade.

Julia tinha uma sala, na qual nos reunimos para a construção dos nossos personagens. Simone é uma personagem muito distante de mim na vida real, embora tenha uma atividade na política que se aproxima da minha realidade de hoje; sou candidata a deputada federal (PSB – RJ). O filme foi um desafio; aqui em Locarno foi a primeira vez que vimos o filme numa tela. Vou também continuar acreditando no poder que o cinema tem no domínio da arte e da revolução. O Brasil não é um país democrático. Embora tenhamos um discurso de retomada da democracia, o Brasil nunca foi democrático porque as desigualdades existem, e onde há desigualdades não há democracia. Hoje, estamos vivendo um processo muito violento; a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. O Brasil é também um dos países mais violentos contra LGBTs. É também um dos países mais violentos contra mulheres e especialmente mulheres negras. O Brasil tem muita violência e falta de respeito com as pessoas que moram nas favelas.

O debate está voltado para a construção de um país que nos respeite como indivíduos e entenda a nossa diversidade de afetos, a nossa diversidade racial, e a impossibilidade de termos nossas casas como favelados e faveladas, sendo violentadas pelos poderes do Estado. Existem alguns debates de mulheres feministas sobre liberdade sexual, mas hoje esse debate é considerado secundário, porque estamos lutando pela vida. Essa luta pela vida é hoje urgente no Brasil, porque estamos morrendo. O Ministério da Cultura foi o primeiro ministério que Bolsonaro extinguiu e com o passar do tempo muitos dos nossos direitos estão sendo extinguidos. As nossas crianças estão morrendo, seja por fome ou violência do Estado, seja por um processo que não nos permite vivenciar nossas próprias histórias.

Julia Murat – Eu acho que o mundo está em transe. Estamos em um momento de revolução mundial e há uma disputa narrativa acontecendo. Não sei quem vai ganhar, mas eu espero que quem ganhe construa um mundo no qual a gente não precise mais de castings para se identificar. O Brasil tem muita violência e falta de respeito com as pessoas que moram nas favelas.

Eu não conhecia o BDSM antes de fazer o filme e fiquei muito fascinada com o universo do BDSM, porque ele produz muito conhecimento. Existe também muita literatura sobre as práticas a fazer. Um dos seus conceitos mais importantes é a consensualidade. A ideia é a de que os acordos devem ser feitos previamente. Outra coisa, o BDSM faz parte da nossa sociedade e enquanto parte da sociedade também estão incluídas as práticas patriarcais machistas e racistas.

Rui Martins esteve no 75. Festival Internacional de Cinema de Locarno.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.