Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Pouca vergonha em dose dupla

É difícil encontrar uma atitude menos ética do que comprar uma reportagem. O objetivo da reportagem é levar ao consumidor de notícias uma informação tão isenta e completa quanto possível. Comprar (ou vender) uma reportagem é trair o princípio básico da profissão; é embalar a propaganda, que por definição é unilateral, para fazê-la parecer notícia, que por definição é plural. É, para ser direto, enganar o leitor, o telespectador, o ouvinte, o internauta; é promover uma fraude contra aquela pessoa que, em última análise, é quem nos paga o salário.

Quando a reportagem é paga com dinheiro público, é ainda mais feio; e quando o dinheiro público é destinado a veículos de comunicação de propriedade do comprador (e vendedor) de reportagens, a falta de ética é quase inimaginável.

Pois o deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), de uma velha oligarquia potiguar, foi ainda mais longe: comprou reportagens a seu favor com dinheiro público, em seu próprio jornal, a Tribuna do Norte, e ainda por cima defendeu essa vergonheira como se fosse a coisa mais normal do mundo. É inacreditável: o mesmo cavalheiro comprou e vendeu a reportagem, foi elogiado em seu próprio jornal, e no caminho embolsou o seu, o meu, o nosso dinheiro.

Outro parlamentar, Osvaldo Reis (PMDB-TO), também usou o dinheiro da verba indenizatória para comprar reportagens favoráveis e notas de elogio. E garantiu que, se não pagar, seu nome nem sairá nos meios de comunicação de seu estado, o Tocantins.

O Congresso tem uma Comissão de Ética, os sindicatos de jornalistas têm comissões de ética. Como é, vamos agir? Vamos ficar tranqüilos enquanto esse pessoal se orgulha da própria safadeza e destrói nossa profissão?



Frase

O deputado Osvaldo Reis, entrevistado pelo Jornal da Band sobre a compra de elogios em meios de comunicação, defendeu seu método de ação. E disse que, se mais dinheiro tivesse, mais gastaria. ‘Recurso é para gastar’, explicou.



O passado à nossa frente

Os mais jovens talvez tenham lido sobre o assunto. Os mais velhos assistiram com tristeza aos acontecimentos. Na época da ditadura, o governo militar interferia nas notícias e nas novelas para criar um ‘clima positivo’. Um criminoso sair ganhando, como em Vale Tudo (ou na vida real), era inimaginável: a censura não deixava. Pois não é que, agora, o Ministério Público resolveu retornar aos tempos de ‘recomendações’ e exigir mudanças no roteiro de novelas, para que fiquem mais conformes às idéias que Suas Excelências têm sobre o mundo?

Sejamos claros: por melhores que sejam as intenções dos senhores promotores, por mais correta que sua idéia pareça neste caso, o que tentaram fazer se chama ‘censura’, e é proibido. E, por melhor que seja a formação que receberam nas escolas, em nenhuma grade acadêmica figura a disciplina ‘roteiro de novelas’.

Como diria o romano Apeles, ‘no sutor ultra crepidem’. Traduzindo, não vá o sapateiro além das chinelas.



A morte e as mortes

Dois bebês índios, da tribo dos caiowaas, morreram de fome em Dourados, no Mato Grosso do Sul. A Folha de S.Paulo deu na primeira página – dos grandes veículos, só ela. Só a Folha, mais uma vez, deu na primeira página a menininha de três anos que foi morta a tiros no colo do avô, em Mauá (SP), no Grande ABC. Em seguida, os dois assuntos sumiram do noticiário.

Até se entende o motivo pelo qual os meios de comunicação dão com mais ênfase os atos de barbárie que atingem pessoas da classe média e alta: são os que têm maior identificação com o leitor – alguém que pode gastar quase 100 reais por mês só na leitura de jornais.

Mas isso desperta um outro pensamento: estarão nossos produtores de notícias – de repórteres aos donos da imprensa – tão afastados assim das pessoas mais pobres? Vamos pedir o mínimo: cadê o repórter capaz de ir aos confins da periferia para fazer a história da família que perdeu seu bebê para a criminalidade? Cadê os grandes chefes de reportagem que farejariam aí a grande matéria do dia seguinte, aquela que pode render uma manchete que não envolva autoridades federais nem declarações sobre a disputa pela presidência de um partido político?

Cobrir polícia não é instalar-se na delegacia, ouvindo autoridades. Não é ficar ao telefone, numa sala com ar condicionado, esperando a chegada dos relatórios que servirão de base para aquilo a quem chamam ‘reportagem’. Cobrir polícia é ir também à moradia e ao trabalho das vítimas, é pisar no barro, é contar como viviam (e como continuam a viver seus parentes e amigos). Em termos de comunicação, só assim poderemos reduzir a distância que nos separa de nosso próprio povo.



E eu com isso?

Recentes estudos demonstraram que, poucos anos após deixar os bancos escolares, algo como 80% das informações lá recolhidas devem dar lugar a outras mais recentes.

Claro. Se não se abrir espaço no cérebro, não poderemos absorver informações novas, como esta (e, cá entre nós, como está mal escrita!): depois de ser internada diversas vezes em clínicas de reabilitação, amigos revelam que Britney Spears usa drogas.

Ou:

** ‘Bárbara Paz se identifica com personagem de Maria Esperança’

Ou ainda:

** ‘Jessica Simpson promete que nunca sairá sem calcinha’

** ‘Mulher que matou cinco filhos na Bélgica é acusada de assassinato’



Título…

CORREÇÃO: Justiça diz que menino de 89 kg pode ficar com mãe



…texto

Ao contrário do que foi publicado anteriormente na notícia ‘Justiça diz que menino de 89 kg pode ficar com mãe’, no dia 27 de fevereiro de 2007, às 14h59, o menino pesa atualmente 89 quilos (…)



Os grandes títulos

Houve um título ótimo, bem maluco, num site:

** ‘Shopping ABC tem para cursos de artesanato’

Houve outro, muito bom, que deve querer dizer alguma coisa, se bem que não em português:

**Pete Doherty vai morar para a casa de Kate Moss’

Mas nada supera o que se segue:

** ‘Sarcófagos encontrados em Jerusalém podem conter tumba de Jesus’

Como pode um sarcófago conter um túmulo?

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados