Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bolsonaro, a gripezinha e a má escolha de Deus

(Foto: Foto: Carolina Antunes/PR – Fotos Públicas)

Como sempre, uma tragédia dessas enche as igrejas, num contrassenso: uns chorando seus mortos, outros pedindo proteção para não morrer. Mas podem também ocorrer coincidências reforçando esse aspecto – que poderá ser considerado religioso para os crédulos – da atual pandemia, responsável por uma inimaginável paralisação quase total das atividades humanas no nosso planeta.

O nome, por exemplo, do presidente francês – Emmanuel Macron, que, no original, quer dizer “Deus conosco” -, ou um dos sobrenomes do nosso presidente, Messias, “o redentor prometido por Deus”. Ao que eu saiba, o francês, conhecido como Macron, não é religioso. Enquanto Bolsonaro, segundo nos querem fazer crer os chamados pastores evangélicos, muito deles meros mistificadores e aproveitadores, seria realmente a manifestação da vontade divina no Brasil. Se o próprio Bolsonaro acredita ou se aproveita disso, não podemos saber.

A sorte desses pastores e a sorte de Bolsonaro, diante dessa mistificação, é a de não existir mais no Brasil uma revista ou jornal satíricos como eram o Pasquim ou a antiga Careta. A crueza das charges e a ironia e esculhambação dos textos fariam todos eles se esconder com vergonha de suas mentiras.

Se, como dizem os evangélicos, baseados não sei no quê, Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente por “vontade divina”, então o povo não foi iludido, mas foi Deus quem se enganou. Teria sido mais um erro ou engano, a Bíblia conta outros. E esse erro fica hoje evidente na questão da proteção dos brasileiros contra o avanço do vírus do apocalipse, negada pela resistência do presidente Bolsonaro à quarentena e ao reconhecimento da pandemia.

Deus errou ao dar preferência às orações dos pastores charlatães mais preocupados em tosquiar suas ovelhas do que em salvá-las. Errou ao pensar que o farsante batizado no rio Jordão, imitando Jesus, e com mensagem colocada e deixada entre as pedras no Muro das Lamentações, fazia parte dos 144 mil eleitos celebrados no Apocalipse, o livro bíblico profético do fim do mundo.

Se não tivesse havido a precaução dos governadores, criando e mantendo uma quarentena nos seus estados, o Brasil iria viver nesses meses uma catástrofe pior que a da Lombardia italiana. Só não entendo por que pessoas com camisetas com letras garrafais “Deus acima de tudo – Aliados patriotas”, que vejo nos vídeos, misturam evangelismo com extremismo de direita e apoio a Bolsonaro contra a proteção do povo frente ao coronavírus.

Ontem (13 de abril), o presidente da França, Emmanuel Macron, prorrogou praticamente por mais um mês, até o dia 11 de maio, a quarentena em todo o país, reconhecendo uma situação de emergência.

Enquanto me chega de São Paulo um vídeo de evangélicos falando em hospitais vazios, a França contabiliza, no dia 13 de abril, um número crescente de vítimas – 117 mil doentes contaminados e 15 mil mortes. O clima parece de guerra em meio a propagandas e boatos.

Um pretenso operador da Bolsa de Valores de Nova York, um dos lugares mais afetados pela pandemia, distribui áudios e fake news denunciando uma conspiração mundial, da qual faria parte a Organização Mundial da Saúde, e pedindo muita oração para melhorar a vibração no planeta.

Os charlatães estão soltos. Na Bélgica, um extraordinário showman, Jean-Jacques Crevecoeur, denuncia países, complô e fala para o pessoal sair da crise tomando cloroquina e vitamina C.

E, no Brasil, o presidente, que falava em gripezinha e ao qual deve sem dúvida faltar um pino, incita o povo a romper a quarentena, de maneira irresponsável, sem se preocupar com um aumento no número de mortos. Ele próprio, segundo circula, faria parte dos afortunados já imunizados, depois de uma contaminação sem más consequências, como pode ocorrer.

No Brasil, onde a temperatura começará a baixar com o fim do outono, as contaminações com o coronavírus poderão atingir seu ponto máximo em maio e junho.

Qual o interesse da maioria dos evangélicos em apoiar a política suicida do presidente Bolsonaro, de romper a quarentena e incentivar a propagação de fake news, segundo os quais não há pandemia?

Seria a dificuldade em receber os dízimos com as igrejas vazias? Se for isso, é escandaloso demais!

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.