Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pandemia e jornalismo: cinco questões para a imprensa sobreviver à covid-19

(foto: Freepik)

Não há dúvidas de que a pandemia de covid-19 seja um daqueles game changers da história. Nas últimas semanas, autoridades compararam a pandemia com “uma guerra”, tanto que sobreviver a ela “se tornou a missão mais importante de nossa geração”. Para além da ansiedade com a nossa saúde e com a dos familiares e amigos próximos, outra camada de ansiedade vem de não conseguirmos prever as mudanças que virão após o arrefecimento da doença – para além de uma recessão ou depressão econômica que já é dada como certa.

Talvez mais como um exercício de retirar o foco da (terrível) realidade imediata, tornaram-se corriqueiros textos que tentam imaginar a sociedade que virá após a pandemia. Paralelos com a pandemia do século passado, de gripe espanhola, entre 1918 e 1920, sugerem que algumas mudanças serão inevitáveis: afinal, aquela pandemia acelerou o término de um dos maiores conflitos armados da história, provou a necessidade de existir um sistema público de saúde e aumentou a prática de exercícios físicos ao ar livre.

Nenhuma dessas mudanças foi realmente radical: a guerra já estava terminando, hospitais já começavam a atender porções mais amplas do público e exercícios físicos já eram vistos como receitas de boa saúde. Seria mais correto afirmar que a gripe espanhola acelerou mudanças que, olhando para trás, já pareciam inevitáveis. Em um recente artigo na prestigiada Foreign Affairs, Richard Haas sustenta o mesmo impacto da pandemia de coronavírus: mais do que mudanças, teremos acelerações.

Deixemos os largos processos para os historiadores ou sociólogos. Nos ocuparemos, aqui, de algumas trends no jornalismo e como ele será impactado pela crise que ainda está longe de ter um prazo para acabar: conclusão da migração para o online, aumento do risco para a sobrevivência de jornais regionais e para o modelo de jornais gratuitos, além de novas percepções sobre a autoridade dos jornais.

1) Transição para o online?
O filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, em entrevista recente à Folha, afirmou que o isolamento do coronavírus provocará um salutar “ódio aos celulares”. “Talvez”, diz ele, “o excesso de isolamento empurre grande parte dos jovens a desligar as telas”. Ainda que isso possa ser verdadeiro para várias esferas da vida, para o jornalismo o contrário parece razoável: com mais gente em casa, em isolamento social ou quarentenados, as fontes de informação tornam-se exclusivamente eletrônicas: televisão, redes sociais, sites e portais de notícias.
Segundo a Mapp, responsável por pesquisas de engajamento na rede, o segmento “portais de notícia” aumentou o número de visitantes britânicos em 84% desde as primeiras mortes naquele país. Necessidade de informações rápidas (vide ponto 4), além da demanda por atividades remotas, como trabalho e educação, e o uso de plataformas de vídeo para diversão e busca de informação, têm acionado o alerta de especialistas sobre os limites físicos da internet.

Desde o início da década, a tendência tem sido os impressos cederem espaço aos portais online. Em mais um exemplo do que já se tornou rotineiro ao redor do mundo, o diário A Gazeta – da rede filiada à Globo no Espírito Santo – deixou de circular diariamente em setembro do ano passado, concentrando suas atividades no online e publicando apenas um semanário impresso. Como é a tendência atual, A Gazeta ergueu um paywall para arrecadar com as visitas ao seu site, transformando-o em sua principal fonte de renda.

Em 2011, o New York Times foi o primeiro dos grandes jornais a lançar um serviço de paywall nos novos moldes, onde uma parte do site era gratuita e outra, premium. À época, com a incerteza se o público estava pronto para pagar por conteúdo online, o New York Times corria o risco de “canibalizar” seu público. A aposta no paywall pagou-se: em fevereiro deste ano, o NYT já tinha mais de 5 milhões de assinaturas online e a redação nunca foi tão robusta. Ao longo destes anos, o NYT reduziu o número de páginas visitadas para os não-assinantes de vinte para três (uma maneira de forçar mais assinaturas), acrescentou narrativas digitais a suas reportagens, lançou uma série de aplicativos e games de notícias e transformou-se num case de sucesso para toda a indústria. Aqui, Folha de S.Paulo, Estadão, O Globo e Zero Hora, só para ficar em alguns, repetiram a receita com diferentes graus de sucesso.

Ainda que o paywall do New York Times tenha se provado eficaz, ele efetivamente inibiu o acesso à informação “de qualidade” (como apregoa o próprio NYT) de parcelas gigantescas da população norte-americana. A proporção de pessoas que pagam por informação nos EUA é minúscula: apenas 16%. Esses leitores tendem a ser mais ricos e com maior grau de formação (diploma universitário). Também tendem a ter mais confiança na imprensa e nas notícias que consomem. Pesquisas sugerem que a confiança é guiada pela qualidade das notícias consumidas. Como nota Alan Rusbridger em Breaking News, “em um mundo de informações quase ilimitadas, as melhores estão disponíveis apenas para os mais abastados. O resto dos Estados Unidos precisa se contentar com um oceano de coisas grátis; algumas verdadeiras, outras falsas”. O mesmo pode ser dito do Brasil.

Diante da emergência da pandemia, a maioria dos jornais concordou que a notícia é um bem público (vide ponto 4) e decidiu por erguer seus paywalls. Mas, conforme os dias de calamidade pública tornam-se semanas e até meses, não se sabe ainda se os jornais continuarão permitindo o acesso liberado a seus conteúdos, sob pena de inviabilizar o modelo de negócio construído nessa década. Também não está muito claro como “baixarão” de novo seus paywalls. Um público acostumado com o óbvio incremento na qualidade das notícias gratuitas vai se acostumar a pagar por elas novamente? As pessoas terão dinheiro para isso, vista a repressão/depressão que se avizinha? O modelo de notícias gratuito será sustentável na falta de paywalls e de publicidade impressa?

É muito cedo, ainda, para respondermos a essas questões. Se observarmos as dificuldades que os queridinhos da revolução digital têm passado nos últimos meses, o horizonte parece sombrio. Ano passado, o BuzzFeed demitiu 15% de seu staff e contratou uma nova editora-executiva com o objetivo de construir novas fontes de renda. Essa semana, reduziu os salários de seus empregados entre 5 e 25% e seu fundador, Jonah Peretti, abriu mão de seu vencimento enquanto durar a pandemia. HuffPost, outro site que deu uma guinada em direção à informação de qualidade e gratuita, reduziu suas propriedades em 7%. Mesmo o modelo de in house ads (como o da Vice), que mistura publicidade e jornalismo, parece a perigo.

O certo é que a migração online deve acontecer também em nível de força de trabalho. Como observam os pesquisadores Mark Deuze e Tamara Witschge, se a redação foi o lócus central da profissão jornalística ao longo do século XX, ela vinha sendo substituída por trabalho remoto, home office e outras configurações. A crise da covid-19 deve acelerar esse processo: com jornalistas sendo obrigados a ficar em casa, mais redações serão transpostas para ambientes “virtuais” (sic), ampliando a precarização da jornada de trabalho de jornalistas. Em casa, os tempos “on” e “off” se misturam em um ambiente já acelerado de acontecimentos. Como essas novas configurações funcionarão na prática e qual será o impacto sobre a autopercepção dos jornalistas, dependentes da redação como um mecanismo formador, ainda está para ser visto.

2) O fim dos jornais regionais?
Se o ethos da notícia como bem público e gratuito levou os jornais à beira da bancarrota, a criação do paywall foi uma faca de dois gumes. Por um lado, ao mesmo tempo em que fake news têm se tornado endêmicas da ecologia digital, a mídia canônica conseguiu se reinventar, muito pela força de suas marcas. Por outro lado, o mesmo não pode ser dito dos jornais regionais.

Sem a força do nome e sem a alavancagem necessária para produzir materiais nos novos formatos – Jill Abramson, em seu Merchants of truth, alerta que foram necessários mais de doze profissionais para produzir a reportagem multimídia “Snow Fall”, do New York Times, a primeira do gênero ganhadora de um Pulitzer -, os jornais regionais têm sido engolidos pelas grandes marcas, centralizadas nas principais áreas urbanas. Essa concentração deve aumentar. Como lembrou a economista Laura Carvalho, a pandemia “vai levar pequenas empresas a serem incorporadas e adquiridas por negócios maiores”.

O que salvava os jornais menores era a ligação que estes tinham com suas comunidades, sobretudo do ponto de vista financeiro. Repletos de anúncios de negócios locais, como bares e construtoras, esses jornais ainda sobreviviam da publicidade impressa, mesmo quando já contavam com portais online. A quebra na circulação devido à covid-19 parece ter sido a “pá de cal” nesses negócios baseados em um modelo ultrapassado. Na última semana, o magnata Rupert Murdoch (News Corp) cancelou a impressão de sessenta jornais regionais australianos. No comunicado, a News Corp afirmou que “as restrições impostas a leilões imobiliários e inspeções domiciliares, o fechamento forçado de locais para eventos e restaurantes em decorrência da emergência do coronavírus” levaram a perdas substanciais nas receitas desses jornais. Esta semana foi a vez da Gannet, publisher de 261 diários (entre eles o USA Today), anunciar cortes de funcionários e ajustes em sua estrutura -, o que levou à queda de suas ações na Bolsa de Valores para 0,65 centavos de dólar.

As dificuldades para os jornais regionais vêm em um momento em que talvez eles sejam mais necessários do que nunca. Como a emergência da covid-19 diz respeito ao bem comum, notícias sobre a movimentação de cada localidade são mais importantes do que nunca. Sem elas, como saber quais medidas são recomendadas pelas secretarias de saúde e prefeituras locais? O pânico (midiatizado) de que uma Itália ou mesmo uma São Paulo se repitam nos rincões do Brasil, mesmo em locais sem nenhum caso confirmado ou suspeito, tem levado muitas populações a se guiarem pelas medidas de segurança recomendadas aos grandes centros. Ou o contrário: sem ideia de que a doença já esteja entranhada em suas localizações, comunidades têm persistido em tratar a covid-19 como algo distante e exótico. Esses são efeitos direto do “apagão de notícias” já alertado pelo Atlas da Notícia, cuja outra consequência direta é a falta de controle sobre os agentes públicos locais.

Nesse caso, também, o online já vinha substituindo os impressos nas comunidades locais. Sempre existiu o desejo por notícias próximas. Há duas décadas, os jornais independentes comunitários ou foram absorvidos por jornais maiores, de outros centros urbanos (no caso dos jornais longe das capitais), ou tornaram-se folhas de bairros (no caso dos jornais em capitais). Tais empreitadas tiveram sucessos distintos. No geral, elas criaram um vácuo para que comunidades de amadores se tornassem jornalistas, agora empoderados pelos meios técnicos e as plataformas necessárias para fazerem ouvir suas vozes comunitárias. Todavia, muitas dessas empreitadas são voltadas para o lado cultural dos bairros e dos municípios – não exatamente o mesmo nicho de hard news que os jornais ocupavam.

3) O modelo de impressos gratuitos está em perigo?
A queda na arrecadação da publicidade impressa tem sido um golpe duro também aos jornais gratuitos, como o Metro. No ano passado, a sucursal brasileira já havia cancelado as edições de Brasília, Campinas e Rio de Janeiro. Nesta semana, foi a vez da edição impressa de São Paulo deixar de circular devido à pandemia de covid-19. A lógica comercial desses jornais era a altíssima circulação, que justificava investimentos publicitários pesados. Por isso, eram distribuídos gratuitamente em pontos de grande movimentação de indivíduos, como estações de metrô ou cruzamentos de avenidas. Com lockdowns, distanciamento social e home office tornando-se constantes, a falta de pessoas nas ruas tornou o modelo desses jornais inviável, como já havia notado o braço britânico da multinacional sueca.

Como uma maneira de atravessar o período mais duro da pandemia, várias sucursais do Metro têm anunciado pesadamente suas versões online (entre elas, as de São Paulo e Londres). Todavia, frente à concorrência da mídia canônica em seu noticiário da pandemia (vide acima), com profissionais mais numerosos e mais qualificados, esses jornais vão ter que encontrar novas formas de atrair leitores e renda. Criar um paywall modifica o pilar de gratuidade e rapidez sobre o qual seu modelo foi erguido. Acrescente-se a isso que a receita de anúncios online não é nem de perto equivalente à do impresso, e o período de quarentena se mostrará duro para esses jornais, sobretudo se for muito longo.

Se conseguirem sobreviver às receitas magras e à concorrência, os jornais talvez ainda precisem enfrentar a mudança de hábitos dos leitores. Nas últimas semanas, vários diários e semanários da Índia têm ido às cordas devido ao pânico de que os jornais impressos poderiam ser transmissores potenciais da covid-19. Com estoques encalhados, assinaturas canceladas e queda abrupta na circulação, muitos estão com dificuldade de manter até suas redações online. O pânico gerado exigiu até intervenções da OMS, assegurando que “os jornais são seguros para tocar”, embora o primeiro-ministro tenha ressaltado que o melhor é lavar as mãos após qualquer atividade, inclusive a leitura de jornais. A situação pode parecer anedótica por ora, mas, como explicou o psicólogo e historiador Steven Taylor, uma consequência provável da pandemia é que muitos indivíduos desenvolvam misofobia (a popular “germofobia”), pelo menos de forma transitória.

O que esses jornais precisarão responder é: após lutar meses a fio contra um vírus invisível potencialmente fatal que pode se esconder em qualquer superfície, as pessoas estarão dispostas a tocar em um jornal distribuído de forma gratuita no metrô, sobretudo aqueles deixados em cima dos bancos? Além da alta impressão, os jornais contavam com uma grande leitura compartilhada (isto é, quando um exemplar é lido por mais de um indivíduo). Segundo os números do Metro Londres, sua impressão diária era de 1,4 milhão, com leitura de 2,3 milhões, o que fazia dele o diário londrino mais lido – até 19 de março. Atualmente, o Metro Londres respira por aparelhos.

4) Essenciais, de novo?
Os eventos de 11 de setembro de 2001 causaram um boom na circulação de revistas de notícias, como a Time e a Life. Como comparação, a edição da Time anterior ao atentado às Torres Gêmeas (datada de 10 de setembro) vendeu 154.820 cópias, enquanto sua edição especial datada de 14 de setembro vendeu 3,4 milhões de exemplares. Ao final de 2001, a circulação da Time e da Newsweek era maior do que os primeiros meses daquele ano, que em geral registrou uma maior circulação anual do que 1980. A circulação da Time continuou mais ou menos constante até 2017, quando caiu para cerca de 2 milhões.

A história de ouro dos semanários tem levado muitos a apostar que o jornalismo pode ressignificar sua importância durante e após a pandemia. São nessas horas de crise que as pessoas se voltam a fontes confiáveis de notícias – e, nesses casos, nada melhor do que jornais renomados como Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e O Globo (a mídia canônica brasileira).

Crises como a queda das Torres Gêmeas e a pandemia de covid-19 são territórios férteis para a desinformação. A urgência por informação ocorre em uma velocidade superior à de produção de conhecimento sobre elas, gerando um “vácuo de informação”. É nessas lacunas que surgem as teorias conspiratórias e das curas milagrosas. Com um mundo muito mais conectado do que há vinte anos, desinformação, má informação e “especialistas” de poltrona misturam-se na geração de ruído. A produção de conhecimento científico não ocorre na mesma velocidade da apuração jornalística e nenhuma destas acompanha a ânsia do público em ser informado. A qualquer momento, consensos podem se provar falsos. Como alguns epidemiologistas já avisaram, mesmo o isolamento social e a quarentena não têm eficácia cientificamente comprovada – ainda que muitos estudos sugiram que, na dúvida, o melhor é mesmo ficar em casa. Como o público reagiria se mais tarde ficasse comprovado que seu sacrifício foi em vão? São as autoridades tanto da ciência quanto do jornalismo que estão em jogo neste momento.

5) Notícia como bem público?
Por último, não podemos descartar que a “desconfiança” com as fontes de informação canônicas tem um claro recorte de classe. Isso é algo que os jornais trouxeram sobre si mesmos. Por mais que a noção de direito à informação pública como pilar da democracia tenha guiado a autopercepção dos jornalistas nas últimas décadas (e contemplado sua percepção da internet como um bem público), a verdade é que os jornais não só estão cada vez mais voltados para as elites como sua força de trabalho é cada vez mais elitista. Ainda que não existam pesquisas equivalentes no Brasil, dados norte-americanos sugerem que “jornalistas costumavam vir de famílias 6% mais ricas do que a média, enquanto agora vêm de lares que são 42% mais ricos (o que significa que eles vêm de casas mais ricas do que os banqueiros da mesma idade)”. Isto condiz com o ethos classe média de valorização da cultura enquanto método formativo e de distinção pessoal, mas produz um distanciamento significativo com o público que os jornalistas pensam defender e/ou representar. Nesse caso, não é de se estranhar quando líderes populistas elegem a imprensa como um bastião das “elites” às quais se opõem. Ela de fato é a elite, composta por pessoas de elite e divulgando valores das elites. Bolsonaro, por exemplo, publicou 94 tuítes agressivos aos jornais e aos jornalistas em seus primeiros cem dias de governo – quase um por dia¹ – ficando atrás apenas de sua obsessão com o “comunismo” enquanto seu vilão ideal.

Como recentemente nomeou Martim Vasques, a “revolta do submundo” tem levado a uma “crise dos especialistas”, papel ocupado não apenas por jornais, mas também pelos jornalistas e intelectuais que escrevem em suas páginas. Jornais, jornalistas e intelectuais têm sofrido ataques tanto do público quanto das autoridades há anos. A desconfiança com os “especialistas” em suas “torres de marfim” não é exclusividade dos governos populistas de direita (vide a desconfiança permanente entre o PT e a Globo), mas foi particularmente ressaltada por eles, sobretudo por perceber que poderiam “driblar” a mídia canônica como porta-voz oficial do público, a fim de uma comunicação mais “horizontal” com seu público, via redes sociais ou sites “gratuitos” (na verdade, patrocinados diretamente pelo governo ou por empresários apoiadores – prática que, de novo, começou com os anos do PT no poder).

Essa questão é importante para compreender o impasse nos quais os jornais se colocaram. Enquanto, sim, a notícia é um bem público, a questão é que, até agora, a mídia canônica não a tratava dessa maneira. Com a covid-19 e a necessidade de voltar-se a uma parcela da população até então alheia, os ruídos tornaram-se evidentes. Os constantes ataques à autoridade da imprensa nos últimos anos a inibe de se alçar à posição que a situação exige: como porta-voz das autoridades e do meio científico. Desconfiadas com as mensagens dos domínios que consideram “a elite”, muitos têm se pautado por informações obtidas de maneiras horizontais, via aplicativos e redes sociais.

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No geral, é fato que os jornais diários impressos vêm circulando cada vez menos – apenas nos EUA, a circulação diária de impressos caiu 12% somente em 2018. Essa baixa é uma tendência desde a década de 1990. A migração para o online pago foi vista como uma solução, mas o modelo sempre pareceu insustentável a longo prazo. A atual pandemia mostrou como o ideal e a prática jornalística estão distantes um do outro. A crise mostrou que notícias de qualidade são mais necessárias do que nunca; no ecossistema saturado de informação, porém, apurá-las com eficácia tem se mostrado um desafio. Os jornais precisam decidir se “atenderão ao chamado” de ofertar notícias de qualidade gratuitamente, como um bem público. Se sim, o modelo que lhes salvou da falência na década precisa ser revisto. Se não, periga ampliar ainda mais a distância entre informação e desinformação: é como se, cada vez mais, leitores habitassem mundos diferentes conforme as fontes que usam para construir seus retratos da realidade.

É por isso que, infelizmente, a covid-19 parece particularmente sensível aos jornais regionais. Justo no momento em que poderiam ser significativos para a construção do bem comum, veem-se estrangulados pela crise econômica que se avizinha. Muitos serão incorporados por veículos da mídia canônica. Outros tantos desaparecerão, ampliando o gap de informação no país e no mundo. Se a pandemia se prolongar, isso significará menos locais cobertos por jornalistas, que também estarão cada vez mais “longe das ruas” e na frente de suas telas – o que a literatura da área apregoa como o pecado-mor da profissão. Também não se pode ter certeza se a autoridade da imprensa passará incólume da pandemia, quiçá se recuperará seu prestígio e sua percepção de necessidade. Com parcelas do público eternamente desconfiadas, o desafio para ocupar o espaço de porta-voz da comunidade científica e das autoridades na gestão da crise é gigantesco.

Por todos esses motivos, ainda é cedo para afirmar, como o epidemiologista Atila Iamarino, que a pandemia provou a importância da imprensa. Essa afirmação dependerá de como a indústria da notícia responderá às cinco questões colocadas. Por ora, a certeza é que a pandemia acelerou vários dos processos nos quais os jornais já estavam envolvidos na última década.

NOTA
¹ TCC de Yvena Plotegher Pelisson, “As estratégias de Jair Bolsonaro de deslegitimação da mídia no Twitter”. 2019. Comunicação Social – Jornalismo. Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória.

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Marcio Telles é jornalista, doutor e mestre em Comunicação (UFRGS). Foi pesquisador convidado na Winchester School of Art (RU) durante o doutorado sanduíche (PDSE CAPES). Também atuou como professor substituto dos cursos de comunicação da UFES. Sua dissertação, defendida em 2013 com o título A recriação dos tempos mortos do futebol pela televisão, ganhou o prêmio de melhor dissertação da Compós. Atualmente, é vice-coordenador do GT Teorias da Comunicação da INTERCOM. É também cofundador da Escola de Comunicação (www.escolacomunicacao.com.br).