Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Que tipo de jornalismo temos e que tipo de jornalismo queremos?

(Foto: Arquivo Pessoal)

Entrevistei Marluce Zacariotti, professora de jornalismo na Universidade Federal de Tocantins e atual presidente da Associação Brasileira de Ensino ao Jornalismo, a ABEJ. Aqui discuto um pouco sobre os atuais desafios do ensino de jornalismo frente às mudanças de nossa sociedade. 

Mudou o perfil do profissional de jornalismo e as exigências para se tornar um jornalista? 

R: Acho que o jornalismo passa por mais um período de transformações, de um lado pelo avanço tecnológico, possibilitando novas perspectivas e inovações, e por outro, por uma mudança de hábitos de consumo. É um novo formato de comunicação tanto do ponto de vista da produção quanto da recepção. As pessoas têm acesso à informação de maneira rápida, além de serem mais ativas na busca de informação. Passar a informação o mais rápido possível também têm ocasionado impactos na nossa produção e com isso as exigências mudam. Hoje tivemos uma mudança de perfil. E como os jornalistas vão lidar com isso? Que transformações vão advir disso? Esse é o olhar atual da ABEJ e está em suas pesquisas e eventos. A segunda pesquisa do perfil do jornalista brasileiro, realizada em 2021 pela Universidade Federal de Santa Catarina, mostra a realidade de um mercado mutante, com jornalistas relatando que estão produzindo conteúdo, sendo gestor de plataformas digitais. Aí nos perguntamos: isso é jornalismo? É um momento de discussão sobre as transformações causadas pelo digital e redes sociais. Há mais possibilidades de trabalho com essas novas plataformas, mas como é esse trabalho? Porque agora o jornalista tem que saber editar, fotografar, filmar. O profissional com um smartphone consegue fazer tudo, mas isso significa também a precarização do trabalho.

Como a Universidade deve preparar o aluno para esse novo mercado de trabalho? 

R: Essa reconfiguração do mercado de trabalho atravessa o ensino do jornalismo e como pensamos a profissão em seus pilares fundantes. Essas transformações também são sociopolíticas e econômicas, mas a ABEJ busca a discussão pedagógica do contexto apresentado. Isso implica pensar no perfil de aluno que havia no curso e qual está aparecendo agora, além de como o professor está se atualizando hoje. Sempre houve um descompasso entre o desenvolvimento das tecnologias e sua absorção e ensino nos cursos, a velocidade entre eles é bem distante e esse desafio sempre foi encarado. A Universidade deve acompanhar todas as transformações tecnológicas às necessidades que o mercado aponta, mas não deve se render especificamente e unicamente a isso, ela deve refletir aspectos que são fundantes e fundamentais para o jornalismo. O mercado está mais confuso, fazendo uma miscelânea de habilidades e competências de diversas áreas da comunicação, o que traz uma mudança no perfil do profissional exigido. Algumas questões que não perpassam diretamente o ensino, mas o impactam são os direitos trabalhistas, cada vez mais raros na área e profissionais precisando ser cada vez mais multifuncionais. Eu acho que jornalistas não fazem produção de conteúdo geral, como youtubers e influencers têm feito. Jornalistas fazem notícia – apurada, ética, informativa. O que de fato está precisando acontecer, e eu acho que essas nossas discussões que estão levando a isso, é qual o lugar do jornalista. E o que nós precisamos hoje ampliar dentro desses conceitos e o que precisamos reconsiderar, pois jornalistas estão cumprindo papéis que, em princípio, não seriam do jornalista. Eu digo em princípio porque acho que está na hora de repensarmos qual é esse papel. 

Como estão as recentes mudanças nas diretrizes curriculares dos cursos de jornalismo? 

R: A ideia iniciada há alguns anos era trazer a perspectiva de um campo científico autônomo para a profissão, separando-a da grande área da Comunicação, visando a necessidade de ampliar as reflexões sobre as metodologias, as práticas, as diretrizes curriculares, ética e legislação, teorias e técnicas do jornalismo, o mercado de trabalho, pesquisa e extensão que se tornaram nossos eixos principais de discussão dentro de um campo próprio do jornalismo. E por que trabalhar esse campo específico do jornalista? Porque entende-se a importância do jornalismo como um campo que deve ter o aspecto científico próprio. Fazemos parte da comunicação, mas temos uma vertente muito diferente de atuação. Dentro do mercado de jornalismo, acabou-se abarcando algumas outras áreas, mas isso não quer dizer que não tenhamos um campo específico, um direcionamento teórico muito contundente próprio. Estamos passando também pelo processo de curricularização da extensão, que está sendo finalizado até dezembro. 

O que se pôde aprender com o ensino EAD forçado que a pandemia nos trouxe? 

R: A pandemia acelerou esse processo do ensino remoto e do ensino híbrido, que é diferente do ensino à distância. Esse ensino tem impactado profundamente também as nossas atividades e o nosso aluno vêm sofrendo com isso. Temos relatos de muitos alunos com dificuldade de lidar com o ensino remoto. Porque apesar de dizermos o tempo todo que a tecnologia democratiza o acesso… é mais ou menos, né? Porque nem todos têm os mesmos acessos, nem todos estão em condições iguais de velocidade e qualidade de internet. Mas tem diferenças, o EAD tem tutor, uma programação e uma infraestrutura que não foi adotada na pandemia, porque ele tem toda uma metodologia específica, diferente do ensino remoto e do híbrido. Mesmo com essas diferenciações, é preciso pensar se essas formas de ensino não presenciais são realmente adequadas ao jornalismo, por causa das atividades práticas essenciais e o ambiente de trabalho coletivo tão necessário para o ensino e prática do jornalismo. Mas é um grande desafio, ainda precisamos avançar muito nessa perspectiva do aspecto pedagógico e metodológico de pensar a EAD para áreas práticas da profissão.

Com os movimentos do mercado de trabalho levando jornalistas a trabalhar em diversas funções não jornalísticas, podemos dizer que temos um novo modelo de negócio para o jornalismo?

R: Nas diretrizes já se apontava a necessidade de incluir o empreendedorismo. Muitos cursos preferiram levar essas disciplinas para a dimensão das disciplinas optativas, como o nome Novos Modelos de Negócio e Jornalismo. Nos próximos encontros da ABEJ provavelmente já apareça mais essas questões, abrindo novas perspectivas e arranjos como o freelancer e o jornalismo coletivo e independente. O aluno precisa conhecer essa nova visão, seja empregado, empregador ou empreendedor. A tendência que está surgindo é que o mercado tradicional está deixando de existir. As empresas estão realmente diminuindo e estão até migrando de papéis, estão trabalhando também com outras áreas na comunicação. Mas é preciso apresentar também a dimensão crítica e reflexiva sobre esses novos modelos. Porque vendem-se como fantástico você ter o seu próprio negócio, ser o seu chefe, como se fosse simples e fácil, só aprendendo uma técnica, mas essa realidade é um caminho para uma autonomia, mas que vem baseada na perda dos direitos trabalhistas e uma série de conquistas históricas, pois não deixa de ser uma ramificação da uberização do trabalho.

O que podemos fazer em relação aos cortes na educação, no ensino, na ciência e no jornalismo?

R: É uma situação que estamos muito preocupados em diversos aspectos. Tivemos um período de muitas perdas, tanto de direitos como de espaços democráticos. Tivemos perdas de possibilidades de atuação na pesquisa, no próprio ensino, na extensão. A Associação de Reitores das Universidades chegou a fazer cartas dizendo que não teriam verbas para a manutenção das instituições até o final do ano. Mas tudo isso trouxe um movimento de mais união entre as associações e instituições que pensam o jornalismo. É preciso mais união para buscar soluções para essas incertezas. Vai demorar um tempo para se ter a dimensão da perda e para voltar tudo aos eixos. É nesses momentos em que é preciso fortalecer as instituições democráticas e as nossas representações para evoluir, pois o jornalismo sempre foi da luta, sempre estamos em uma batalha, no front, na luta por autonomia e legitimação. Assustamos um pouco dessa vez com as novidades como desinformação, fake news, deep web, tudo muito rápido e descontroladamente. Mas ainda temos a força da resistência. A resistência de quem acredita na democracia, no saber e na educação como um caminho necessário e fundamental para a cidadania e dignidade das pessoas.

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Karina Francisco é Jornalista pela Unesp Bauru, Mestranda em Divulgação Científica pela Unicamp.