Quinta-feira, 17 de julho de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1346

A falência do jornalismo das rotativas

(Foto: AzamKamolov/Pixabay)

O Digital News Report 2025, publicado esta semana pelo Reuters Institute, é o mais completo raio-x do consumo de notícias digitais no mundo. E o diagnóstico é preocupante: o engajamento com o jornalismo tradicional continua a cair; os fluxos informacionais estão nas mãos de plataformas e criadores; a inteligência artificial avança na personalização (e na manipulação); e o papel do jornalismo como mediador coletivo está se esvaindo.

O relatório revela uma realidade que, para quem acompanha o setor há décadas, não chega a surpreender — mas choca pelo grau de avanço: o jornalismo perdeu sua centralidade como espaço de validação pública da realidade. E o que se coloca no lugar é um ecossistema caótico, fragmentado, emocional e muitas vezes intoxicado por interesses opacos e algoritmos opressivos.

O que está matando o jornalismo é o controle dos fluxos

Ao longo dos meus 40 anos de atuação — como jornalista, editor, gestor e empreendedor da informação — vi de dentro a transformação estrutural do nosso campo. O que está matando o jornalismo não é a falta de leitores, nem a falência dos jornais impressos. O que o está matando, como o conhecemos, é o controle quase absoluto que as Big Techs conquistaram sobre os fluxos de informação da sociedade.

Esse domínio se consolidou em dois níveis:

  • As plataformas sociais (YouTube, Facebook, TikTok, X) substituíram os jornais como mediadores da conversa pública;
  • Os mecanismos de busca (Google, Bing, agregadores por IA) passaram a filtrar o que merece atenção.

Em vez de disputar esse espaço, a maior parte da imprensa se submeteu — terceirizando distribuição, linguagem, dados e relacionamento com o público. Passou a viver no território do outro, otimizando manchetes para robôs, investindo em SEO e redes, sem criar estruturas próprias de presença e articulação.

A Página Temática é uma resposta a essa ruptura

A Página Temática não foi concebida como seção, nem como produto, mas como nova arquitetura do jornalismo para o ambiente em rede. Uma resposta editorial, tecnológica e civilizatória ao colapso da intermediação tradicional.

Ela articula:

  • Curadoria em rede de informações, vozes e evidências;
  • Mediação pública de conflitos e temas relevantes, com transparência;
  • Engajamento ativo das comunidades afetadas pelo tema;
  • Presença distribuída, territorial e relacional, fora dos silos da velha redação.

A Página Temática rompe com o broadcast e inaugura uma lógica editorial relacional: menos centralização, mais articulação; menos manchete, mais contexto; menos audiência passiva, mais coprodução de sentido.

O Digital News Report 2025 mostra que o processo é antigo. Começou nos anos 1970, maturou nos 1990 com a internet comercial, e hoje explode com a IA generativa. Enquanto isso, os jornais permaneceram inertes. Presos à linguagem impressa, à pauta institucional e à publicidade de massa, perderam a chance de construir plataformas próprias de relacionamento com o público.

Hoje, as tecnologias publicitárias associadas aos Google, Meta e Amazon entre outros ocuparam o lugar que deveria ter sido da imprensa. Organizam a atenção, dominam os dados, distribuem conteúdos e mediam a visibilidade.

Curadoria, comunidade e rede — contra hierarquia, centralização e broadcast

A alternativa que se apresenta não é nostálgica. É uma reinvenção estratégica e epistemológica da função jornalística. Se o jornalismo quiser sobreviver, precisará:

  • Assumir a curadoria como valor central;
  • Atuar como infraestrutura relacional em rede;
  • Reconstruir confiança não pelo prestígio, mas pela presença.

A Página Temática é o embrião desse modelo. Para funcionar, exige:

  • Programadores de alto gabarito, capazes de trabalhar com APIs, agregadores, bases abertas e interfaces leves;
  • Jornalistas com inteligência narrativa e repertório comunitário;
  • Sustentação por alianças entre veículos, centros de conhecimento, instituições cívicas e redes locais.

Não se trata de mais um produto editorial. Trata-se de uma nova forma de habitar o espaço público — em que o jornalismo volta a ser mediador confiável em rede, curador coletivo de realidade, articulador de sentido num mundo em fratura.

Essa é, para mim, uma das respostas possíveis ao que o Digital News Report nos revelou com clareza: a desarticulação do jornalismo enquanto infraestrutura social compartilhada.

Ou reinventamos nossas plataformas — ou continuaremos sendo apenas mais um conteúdo no feed dos outros.

Os bilionários da tecnologia são uma ameaça para a humanidade
(É hora de romper a teologia algorítmica antes que o preço seja irreversível.)

Alan Kay disse certa vez que “a melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo”. A frase virou mantra para os bilionários do Vale do Silício. Mas como mostra Adam Becker em seu novo livro, More Everything Forever, o que está sendo inventado não é apenas tecnologia — é uma narrativa de salvação, com pretensões religiosas e consequências políticas profundas.

Becker chama isso de ideologia da salvação tecnológica: “Um triunvirato de crenças: a certeza de que a tecnologia resolve tudo, a fé no crescimento perpétuo, e a obsessão quase religiosa com a transcendência dos limites humanos”.

Essas ideias não vivem apenas na ficção científica. Elas estruturam a lógica de atuação de nomes como Altman, Musk e Andreessen. Justificam a concentração de poder, a evasão regulatória, a destruição ambiental e a substituição da política por engenharia. Substituem o presente por um “futuro inevitável” — sempre distante, sempre inatingível, sempre governado por eles.

“O que essas visões oferecem é uma fantasia de controle — a ideia de que alguém, ou algo, sabe o que está por vir e está no comando.”

Como jornalista e analista das transformações informacionais que vivemos desde os anos 1990, vejo com preocupação o avanço dessa mitologia. Ela aniquila o jornalismo como instância de mediação pública, reduz a democracia a uma externalidade irrelevante e coloniza o imaginário coletivo com promessas de transcendência enquanto o mundo real se desintegra.

Becker não poupa palavras:

“Esses sonhos do futuro são, na verdade, pesadelos para o resto de nós.”

“A Singularity é uma utopia tecnológica absurda — um paraíso eterno sob máquinas de graça amorosa.”

Não se trata apenas de “regular a IA”. Trata-se de disputar o futuro — e o presente — com imaginação política, responsabilidade coletiva e crítica institucional. É hora de romper com essa teologia algorítmica antes que o preço seja irreversível.

Recomendo fortemente a leitura da entrevista de Bryan Gardiner com Adam Becker, publicada no The Download/MIT Tehnology Review esta semana. Vale cada linha.

Texto publicado originalmente aqui

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Rodrigo Mesquita é jornalista e estrategista institucional, com mais de quatro décadas de experiência em mídia, inovação digital, governança ambiental e políticas públicas. Foi editor-chefe do Jornal da Tarde e diretor da Agência Estado, onde criou a Broadcast, primeiro serviço em tempo real do país. Atualmente atua como conselheiro da Broadcast e do InovaUsp.