Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os “invisíveis” ganham manchetes na imprensa

(Foto: Flickr/Pol beda Hervs)

O triste espetáculo de milhares de brasileiros em filas quilométricas para receber 600 reais de ajuda emergencial do governo permitiu à imprensa uma rara oportunidade de documentar visualmente quem são os quase 40 milhões de pessoas “invisíveis” para as estatísticas oficiais.

Além da extensão das filas e do caráter nacional da “invisibilidade” da pobreza, a dramaticidade da documentação jornalística foi acentuada pelo fato de que a distribuição de dinheiro pretendia amenizar um problema mas acabou agravando outro, o da exposição à contaminação pelo coronavírus.

O fenômeno dos “invisíveis” acabou dando visibilidade tanto ao agravamento da miséria nacional por conta da crise econômica como à total ausência de políticas públicas voltadas para a saúde nos segmentos mais pobres da população. Foi um duplo revés para a elite governante do país.

É claro que a TV Globo teve motivos políticos para dar destaque ao tratamento desumano dado pela Receita Federal e pela Caixa Econômica aos milhares de brasileiros que bateram de frente com a burocracia estatal no afã de receber a ajuda emergencial. A emissora explorou habilmente a “bateção” de cabeças dos órgãos federais para pôr em evidência a falta de coordenação no governo Bolsonaro.

Também a Folha de S.Paulo adotou a toada. Mas, para a esmagadora maioria do público, que ignora as manobras políticas de bastidores em Brasília, ficou a sensação de uma vergonha nacional brutalmente revelada pelas imagens de multidões enfrentando calor, chuva, noites mal dormidas e muitas frustrações para conseguir metade de um salário mínimo.

A pandemia de coronavírus está mexendo com realidades ignoradas pela esmagadora maioria do povo brasileiro. Realidades que sempre receberam um tratamento burocrático da maioria dos órgãos da imprensa nacional. Tudo indica que o que estamos testemunhando atualmente é apenas uma amostra do que ainda vem por aí. Já é quase um consenso de que as mudanças serão radicais e numerosas, mas ainda é impossível prever em que direção os ventos vão soprar.

Diante deste cenário de incertezas, cabe ao jornalismo um papel transcendental, porque ele será responsável pela qualidade e intensidade dos fluxos informativos que alimentam a produção de conhecimentos socialmente relevantes sobre os quais se apoiará a tomada de decisões de governos, corporações e comunidades.

Mudança de foco

Numa conjuntura de incertezas, a visibilidade dos “invisíveis” é essencial, pois eles são protagonistas que não podem ser descartados em crises que envolvem saúde pública, segurança pública e saneamento básico. Por mais que a elite se entrincheire atrás de condomínios, planos de saúde e vias expressas, em algum momento e em algum lugar ela terá que cruzar com os brasileiros “descartáveis”, como os que hoje perturbam o trânsito na proximidade das agências da Caixa Econômica, ou que lotam os hospitais e cemitérios por conta do coronavírus.

Para o jornalismo, o dilema colocado pelas manchetes sobre os “invisíveis” nas filas na Caixa e na Receita leva a uma opção não menos perturbadora. A busca de saídas para nossos desafios atuais implica substituir a velha teoria de que o jornalismo é apenas um mensageiro de fatos e dados pela preocupação em construir sentidos e significados para a notícia dura (hard news). Os fatos, dados e eventos são, hoje, a principal matéria prima do Twitter, Facebook, YouTube, Instagram e WhatsApp. Construir significados é mostrar o contexto, causas, responsáveis ocultos e consequências de um fato e é a parte que leva as pessoas a se posicionar diante de um acontecimento.

O episódio dos “invisíveis” na crise do coronavírus mostrou que a notícia é apenas um input para o jornalismo avançar em sua principal missão, que é a de desenvolver significados que permitam às pessoas fortalecer as relações sociais nas comunidades onde estão inseridas. Significa basicamente dar informações que ajudem os “invisíveis” a tomar consciência de sua situação e superar os obstáculos que os mantêm nesta “invisibilidade social”.

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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.