Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Tigre de papel combate inimigos do povo

Os primeiros meses de Donald Trump no poder foram tão inexpressivos em termos de realizações que levantam a possibilidade de que o apresentador de reality show seja, na realidade real, um mero “tigre de papel”.

A expressão, atribuída a Mao Tse-tung, que a usava em arengas retóricas contra os Estados Unidos meio século atrás, significa alguém ou alguma coisa que parece extremamente ameaçador, mas de fato é incapaz de vencer desafios.

Nenhuma das extravagantes promessas de campanha de Trump progrediu no seu início de governo. Ao contrário, derrotas se sucederam, ou por inépcia própria, ou de sua equipe de neófitos arrogantes, ou por ação de instituições da democracia americana.

Ainda é cedo para descartar a possibilidade de Trump produzir mal ao mundo, pois, afinal, não é pequeno o arsenal simbólico, bélico, financeiro e político de que dispõe o ocupante da Casa Branca.

Mas as indicações são de que Trump está e continuará sendo contido em seus piores intentos ou por imposição dos fatos, ou por cálculo político, ou por pressão interna das vozes mais sensatas em seu círculo íntimo, ou pela resistência social.

Entre as muitas explosivas políticas públicas do seu ideário para a administração ainda mantidas, está a de introduzir legislação para tornar mais fácil, rápida e severa a punição de jornalistas por supostos crimes de informação ou opinião.

Trump ganhou muitos votos entre o eleitorado mais conservador com sua retórica de ostensiva hostilidade contra veículos jornalísticos de melhor tradição do país, em geral seguidores de linha editorial de centro-esquerda ou “liberal”.

Uma vez presidente, declarou guerra aberta à imprensa, que passou a chamar de “inimiga do povo”. Ele possivelmente desconhece o fato de que a expressão é o título de uma famosa peça teatral de Henrik Ibsen, de 1882.

No teatro, o “inimigo do povo” é um médico, dr. Thomas Stockmann, que descobre seriíssimos problemas no sistema de drenagem da cidade onde reside, um famoso balneário, capazes de colocar em grave risco a saúde dos habitantes e turistas.

Seu irmão, o prefeito, não gosta das conclusões do médico, porque prejudicariam seu orçamento e projetos políticos, e tenta convencê-lo a não dar divulgação a seus achados. Não consegue, e passa a persegui-lo (auxiliado por jornalistas que alicia) com a alcunha que agora Trump usa contra a imprensa.

O epíteto também foi intensamente utilizado por Stalin contra seus adversários nas lutas pelo poder na União Soviética. A associação histórica e literária desse jargão em geral é benévola em relação aos acusados e nefasta aos acusadores que se valem dele.

Há indícios de que o padrão se mantém agora. Dois dos principais alvos de Trump, o diário The New York Times e a rede de TV CNN, registraram grandes avanços nos negócios nos cem dias iniciais do governo de seu algoz.

O Times ganhou 308 mil novos assinantes no período e rompeu a barreira dos 3 milhões. A CNN teve um ganho de audiência de 21% entre janeiro e março e alcançou seus maiores índices em 14 anos, além de aumentar em 6% o seu faturamento.

Enquanto isso, o porta-voz oficioso de Trump, o âncora Bill O’Reilly, da Fox News, viu ruir o seu prestígio, ao ser mandado embora após ser acusado de sucessivos episódios de assédio sexual.

Trump fez o que pôde para defender o amigo e impedir sua demissão, mas motivos superiores e provavelmente pouco nobres levaram a família Murdoch, dona da TV, a acabar com a carreira de seu maior astro (veja acima).

Ao menos por enquanto, a guerra contra o jornalismo é mais uma frustração para Trump.


Os amigos do povo
O’Reillly pode ter caído para amenizar risco

A família Murdoch  não perdoou Bill O’Reilly, o maior responsável pela popularidade da Fox News entre o público de direita, com seu estilo conservador raivoso e agressivo.

De início, muitos acreditaram que os Murdoch haviam aquiescido aos protestos de mulheres e setores progressistas da sociedade contra a manutenção de um molestador sexual em posição de destaque.

Logo ficou claro que as razões podem ter sido bem diversas de uma possível crise de consciência.

A polícia federal americana está ampliando as investigações da Fox News por indícios crescentes de que a emissora era uma espécie de fábrica de assédios em série. O ex-CEO Roger Ailes é alvo de muitas acusações do gênero e há outros suspeitos.

Manter O’Reilly causaria à Fox prejuízos de imagem e materiais, com possíveis multas e indenizações milionárias.

Meganegócio britânico ajudou a derrubar a âncora

O escândalo com O’Reilly ocorreu quando os Murdoch estavam prestes a fechar um dos maiores negócios da história de seu império de mídia: a compra de 22% das ações da Sky, para ficarem com 61% do controle da maior rede de TV paga do Reino Unido.

Em abril, as autoridades regulatórias europeias aprovaram o negócio. Mas, em maio, uma das dezenas de mulheres que acusam dirigentes e jornalistas da Fox News americana de assédio procurou a Ofcom, o órgão britânico regulador dos negócios de comunicação, para denunciar a empresa.

A Ofcom aceitou o caso e vai decidir se James Murdoch, filho do patriarca do clã, Rupert, e atual presidente da empresa, tem suficiente idoneidade moral para deter o controle total da Sky.

Não demitir O’Reilly seria prova-velmente muito danoso para a possibilidade de o governo aprovar a transação.

Números fortes

R$ 48 bilhões é quanto a Fox pretende pagar para ter o controle da rede de TV paga Sky no Reino Unido

R$ 40 milhões é quanto a Fox News alegadamente pagou às acusadoras de Bill O’Reilly para não fazerem acusações criminais contra ele

9% dos tweets de Donald Trump foram retuitados por mais de 50 mil pessoas em média por dia após seu 50ª dia na Presidência

60% dos tweets de Trump eram retuitados em média por mais de 50 mil pessoas até seu 50Î dia na Presidência

58% dos domicílios brasileiros têm pelo menos um aparelho de smartphone em uso

112 milhões é o número de usuários de Facebook no Brasil

6% é quanto os brasileiros representam na base total de usuários do Facebook

Fontes: Ofcom, The New York Times, Associated Press, IBGE e Meio&Mensagem


Boas-novas no Brasil
Justiça defende liberdade e surge novo jornal

O poder judiciário tem sido, ao menos nas suas instâncias inferiores, o maior censor no Brasil desde o fim do regime militar. Por isso, sempre deve ser saudado com aplausos quando ele parte em defesa da liberdade de expressão, como ocorreu já duas vezes este ano. Aplausos também devem ser dados quando surge um novo veículo jornalístico, como aconteceu em maio, numa época em que tantos estão fechando.

“Cala a boca já morreu” de novo

A presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Cármen Lúcia, anunciou a criação de uma comissão para investigar possíveis obstáculos ao exercício livre do jornalismo no Brasil. “Quero apurar isso para ver quais são os problemas gerados, já que temos uma Constituição Federal que assegura tão amplamente a liberdade de imprensa, com um texto que não exige grande elucubração para ser interpretado”, disse.

Ela já havia demonstrado seu apreço pela liberdade de expressão em 2015, quando votou no STF pela impossibilidade de biografias serem previamente censuradas por qualquer indivíduo ou autoridade e encerrou sua fala com a frase “Cala a boca já morreu, quem disse foi a Constituição”.

Blog também é jornalismo livre

Nem tão conhecido por empenho pela causa da liberdade de expressão, o ministro Dias Toffoli resolveu em decisão liminar que a Justiça não pode determinar a retirada do ar de blogs e sites sob pena de impedir a atividade jornalística.

Ele suspendeu provisoriamente determinação de tribunal do Mato Grosso do Sul que havia retirado do ar o “Blog do Nélio”, de Nélio Raul Brandão.

“Toda a lógica constitucional da liberdade de expressão e da liberdade de comunicação social aplica-se aos chamados ‘blogs jornalísticos’ ou ‘jornalismo digital’, o que resulta na mais absoluta vedação da atuação estatal no sentido de cercear ou, no caso, de impedir a atividade desempenhada pelo reclamante”, afirmou Toffoli.

Quatro Cinco Um por livros

Desde o legendário Leia Livros, o Brasil carecia de um título dedicado apenas ao universo editorial, na linhagem da New York Review of Books. Em maio, Paulo Werneck e Fernanda Diamant preencheram a lacuna com o lançamento do Quatro Cinco Um.

O nome faz referência ao romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury(Biblioteca Azul, 2012), sobre uma sociedade em que os livros são  proibidos.


Wikijornalismo
Redação Coletiva

Uma antiga máxima do jornalismo diz que é impossível fechar uma edição ou escrever manchetes em assembleias de redação. Que dirá com a participação de grande número de pessoas de fora do jornal.

Experiências nesse sentido ficaram famosas pelo fracasso retumbante, como quando o Los Angeles Times tentou produzir um editorial com a participação de centenas de leitores.

Agora, Jimmy Wales, 50, criador da Wikipedia, vai tentar fazer jornalismo nas bases da sua agora relativamente consagrada, mas por muito tempo contestada, enciclopédia. As intenções parecem ser as melhores. Wales diz que vai combinar o espírito de comunidade anônima da Wikipedia com os cânones do jornalismo.

Os recursos humanos próprios, como no seu empreendimento anterior, serão escassos: de início apenas dez jornalistas na redação e um exército de voluntários. A Wikitribune quer provar que é possível fazer bom jornalismo de maneira economicamente sustentável com a utilização das tecnologias existentes e da boa vontade das pessoas, apesar do clima de acirrado confronto ideológico.

Ao contrário da Wikipedia, a Wikitribune vai dar poder a experts, que terão a palavra final quanto ao que será colocado no ar, muito ao modo tradicional do centralismo democrático que sempre imperou nas redações.


Má consciência?
Dono do ebay lança projeto contra discurso de ódio

enquanto facebook e google tentam controlar danos à sua imagem com iniciativas tardias e até agora pouco eficazes para conter a disseminação de fatos falsos em suas redes, outra gigante da internet, o eBay, procura seu nicho de responsabilidade social no combate ao discurso de ódio.

Seu fundador, Pierre Omidyar, anunciou a doação de 100 milhões de dólares para apoiar empreendimentos de jornalismo investigativo para contra-atacar conteúdos que preguem racismo e outras ameaças aos direitos humanos.

O Vale do Silício, que parecia ter surgido como uma nova forma de capitalismo, voltado para a livre circulação de informações, para dar voz e direito de opinião aos que nunca os haviam tido e aparentemente tudo isso sem cobrar nada dos consumidores, atravessa na segunda década do século 21 uma séria crise de reputação, da qual seus líderes só mostram se ter dado conta agora.

Omidyar, que tem 49 anos e cultiva perfil público muito discreto em comparação à maioria de seus colegas, não apareceu para explicar seu ato de filantropia. Ele foi um dos produtores do filme Spotlight, sobre repórteres investigativos do Boston Globe.

Entre os beneficiários iniciais do programa estão o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), que no ano passado revelou os Papéis do Panamá, com provas
de inúmeras ações de corrupção internacional, e a Latin American Alliance for Civic Technology, que promove engajamento cívico e controle de ações governamentais no subcontinente.


Aceno à direita
Colunista cético quanto à mudança climática provoca fúria

na contramão da oposição a Donald Trump, que lhe está rendendo milhares de assinantes, o New York Times contratou um colunista destoante e sofreu um motim entre antigos leitores.

Bret Stephens, 43, era uma das estrelas do Wall Street Journal, jornal da família Murdoch e tradicional bastião da direita americana. Ali, ele se destacava por fazer críticas ferinas a Trump e elogios aos céticos da mudança climática.

Poucos temas dividem tanto a sociedade americana quanto o aquecimento global. O combate aos efeitos dos gases estufa foi uma das bandeiras de Obama e sua abolição é um dos estandartes de Trump.

O Times sempre se alinhou com a convicção de que as mudanças climáticas são causadas por ação humana e colocam em risco o futuro do planeta. Trump e os céticos acham tudo isso bobagem de idealistas.

A estreia de Stephens não deixou barato para os tradicionais admiradores do jornal. Embora sem o radicalismo de seu tempo de Journal, atacou o que considera ser excesso de cientificismo, que resulta em alarmismos desnecessários.

A reação foi imediata e feroz: as mensagens de protesto entupiram o correio eletrônico do diário, milhares cancelaram assinatura e a ombudsman se desdobrou para tentar arrefecer a fúria do leitorado.

A estratégia do Times pode ter o objetivo de não se deixar sufocar na bolha liberal que muitos apontam como uma das causas do fracasso da imprensa em identificar a possibilidade de vitória de Trump na eleição de 2016.

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Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista.