Sunday, 12 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

A teologia natural e a guerra midiática

Existe uma guerra total contra tudo que respira, vive, no mundo; uma guerra depredadora, bárbara,em nome de uma cruzada religiosa que incorpora e concentra, no atual presente histórico, os piores sentimentos de superioridade étnica, linguística, de gênero, de classe – para não dizer de castas – que a humanidade vem cultivando desde os começos dos tempos.

É uma guerra do lado que se autodenomina como o civilizado, o humano, o bom, o rigoroso, o sério, o produtivo, o belo, o inteligente, o simpático,o educado, o sensato, o responsável, o glorioso, o desejável contra tudo e todos que ocupam o outro lado do polo maniqueista; contra tudo, portanto, que é preconcebido como o inumano, mau, risível, improdutivo, feio, burro,carrancudo, ignorante, insensato, irresponsável, inglorioso, terrorista, terceiro-mundista.

Se o capitalismo, diferentemente de outros sistemas de dominação, tem como principal fundamento religioso a auto-valorização do valor, a presente guerra total contra a vida se constitui como a do valor contra o não-valor, o que me lembra um conto da escritora Hilda Hilst, chamadoTeologia Natural”, no qual uma velha mãe, descrita como um tiquinho de gente, marcada e demarcada pelo mais completo abandono, é tomada por um filho, tão abandonado quanto, que a manipula como se uma mercadoria fosse, a fim de limpar sua barriga, seu sexo, suas costas, com o propósito de vendê-la na cidade, acreditando que dotaria a mãe de valor de mercado apenas dando um brilho nela, engraxando-a como se engraxa um sapato velho, pois se tudo que existe possui um valor, pode ser vendido, a mãe vetusta também pode, pois a sua existência é a prova cabal da teologia natural da auto-valorização do valor, razão suficiente para que Tiô, o apelido de filho, leve-a ensacada para ser vendida na cidade.

Tudo é comércio, mais-valia

Teologia natural é também o nome de um ramo da filosofia da religião que procura explicar a existência de Deus de modo científico, usando argumentos racionais e apoiando-se na experiência, sem a muleta de imponderáveis transcendências e invisíveis. Deus existe naturalmente, racionalmente, independente da fé; do homem. É isso que o personagem do conto de Hilda Hilst acredita (racionalmente, misticamente). Esta é a sua teologia natural: a mãe velha pode ser vendida porque a racionalidade do mercado nos diz que tudo é comprável e tudo é vendível, razão pela qual, por consequência, para tudo existe um comprador.

É precisamente aí, na pretensão de racionalidade, que a fronteira entre o natural e o teológico se esvai, de tal sorte que já não sabemos o que é ciência e o que é mistificação ou o que é racional e irracional. A atual guerra total contra a vida é literalmente uma teologia natural, com todas as suas ressonâncias tecnológicas, científicas, filosóficas, estéticas, éticas, racionais, cosmológicas, midiáticas. Se o fundamento obscurantista ou a verdade transcendental de nossa época é a crença de que tudo pode ser vendido, a teologia natural é a contraparte racional, pragmática, experimental, científica desse fundamento: se tudo pode ser vendido, logo tudo que é racional, ou exemplo de civilização, pode ser comprado.

O princípio da guerra total do capitalismo contemporâneo é, pois, este: a premissa teológica que diz que tudo é venal tomou por completo a racionalidade, comprando-a e, portanto, pondo-a a serviço da teologia natural do mercado global. Esta, para vender, compra a ciência,a filosofia, a estética, as tecnologias, as mídias, as ideologias, os talentos, as competências, a fim de usá-los como dispositivos racionais da guerra total, teológica, do capitalismo neoliberal contra a vida.

É assim que a vida fica totalmente desacreditada e a auto-valorização do valor, que é a auto-valorização de venda e compra, torna-se por excelência o lugar de nossa teologia natural, de tal sorte que tudo, praticamente tudo – que vemos, escutamos, vivemos, desejamos – constitua própria auto-valorização do valor; é propaganda de mercadorias; é mercadoria. Tudo, portanto, constitui-se como uma teologia natural de compra-e-venda. Tudo é comércio, mais-valia; é a própria auto-valorização do valor se realizando, na prática, como experiência concreta, naturalmente, teologicamente.

Um sistema racional e obscurantista

Ao mesmo tempo, tudo, sob o ponto de vista do capitalismo, ao tornar-se uma auto-valorização teológica do valor, por consequência passa a fazer parte da guerra contra tudo que obstaculiza ou se opõe à teologia natural da compra e da venda, do crédito e do déficit, do, enfim, valor valorizando-se ao infinito, como teto sem fim de moeda, naturalmente sem lastro no real, porque teologicamente sem lastro na vida; porque é transcendência, ainda que vivida e desejada como se fosse a racionalidade, a realidade, a ciência, a experiência, o inquestionável, o visível, o credível, o bom, o belo, o natural.

De um lado, portanto, tem-se a auto-valorização do valor, que preenche o mundo valorizável como ocidental, racional, democrático, inteligente, cristão, legal, emocional, sarado, alegre, amigo, sério, respeitável, rigoroso, confiável, sensual, talentoso, criativo, normal, bom, belo, ético, familiar, competente, sujeito de compra-venda; de outro, por sua vez, tem-se o não valor, visto e concebido como perigoso, traidor, violento, irracional, bandido, torturador, terrorista, conspirador, comprado e vendido.

O sistema midiático do capitalismo contemporâneo é o cenário virtual da teologia natural da auto-valorização do valor. Nele o valor é auto-valorizado o tempo todo, ao mesmo tempo em que é também agressão contra tudo que é prescrito teologicamente como não-valor, pois quanto mais o valor se auto-valoriza mais o não-valor é mal visto, mal concebido, mal analisado, como estratégia inconsciente e consciente da guerra total contra a vida, no não-valor desta.

É por isso que esse sistema de naturalidade teológica é racional e ao mesmo tempo místico, obscurantista, porque valoriza o que é valorizado e desvaloriza o que é desvalorizado, não conseguindo fazer nada diferente disso, porque está tomado pela teologia da guerra total contra o não-valor, como parte essencial de seu modo de operar pedagogicamente, ontologicamente, esteticamente, informativamente, politicamente, racionalmente.

Um cenário midiaticamente montado

Vejamos, a propósito, o caso recente da guerra imperialista contra a soberania do povo líbio. A mídia corporativa não poderia jamais fazer senão o que fez e faz: produzir um monopólio narrativo em que o Ocidente – logo a Otan, logo a Inglaterra, logo a França, logo os Estados Unidos – constitui-se como o epicentro natural da auto-valorização teológica do valor civilizacional, ao passo que Muamar Kadafi foi (é) apresentado artificialmente como ditador e genocida; o não-valor terrorista.

É, pois, um sistema de redundâncias: auto-valor é igual a auto-valor e só valoriza auto-valor. Tudo o mais é não-valor: é bárbaro, perigoso e deve ser eliminado, em nome da sagrada escritura do valor. É por isso que é inútil denunciar incoerências, hipocrisias e a utilização recorrente de edições opostas para pesos que se cruzam em suas semelhanças, razão pela qual, por exemplo, a monarquia inglesa é vista como teologia natural do luxo ou o sangue azul do auto-valor de um sistema teologicamente concebido como democrático, enquanto Kadafi, sem direito a mediações históricas, humanas, é simplesmente um sanguinário ditador “comedor de criancinhas”.

É por isso, igualmente, que o auto-valor midiático foi incapaz de apontar incoerências e registrar a infração dos limites legais, no caso da invasão da Líbia, apresentando-se, nesse momento, como analfabeto de pai e mãe, pois absolutamente inábil para ler a Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, que não permitia que a Otan bombardeasse Líbia, nem que fosse o braço militar-estratégico dos “rebeldes” e muito menos que impusesse um inferno ao povo líbio, sob o pretexto de protegê-lo e sob o pretexto de uma natural guerra civil contra um ditador, enquanto o que realmente ocorre é a invasão de tropas especiais da Otan em território líbio, em Trípoli, com seus helicópteros Apaches abrindo o caminho, em proibido território urbano, espalhando desespero, carnificina e destruição, num cenário midiaticamente montado para parecer que são os comprados rebeldes que estão avançando no terreno.

Justiceiros e defensores da mais-valia

Para o auto-valor midiático, o auto-valor bélico ocidental, mesmo que cuspa na Resolução da ONU, está sempre certo porque massacra, barbariza, humilha, espalha irradiação em nome da seguinte racionalidade, indiscutível, necessária: o auto-valor teológico do complexo militar-industrial-financeiro do Ocidente é sempre civilizador, mesmo, e principalmente, quando pratica genocídios porque, nesse caso, está simplesmente desvalorizando o não-valor a fim de auto-valorizar-se, o que é perfeitamente natural, porque redundante, porque especular, porque teológico.

A guerra do auto-valor é uma guerra total ou guerra enxame porque tudo no auto-valor é elemento bélico contra o não-valor, mesmo que não seja intencional, que seja inocente, pueril, angelical. O auto-valor só o é, como valor de compra e venda, porque sequestra o não-valor, o rouba, o criminaliza, descrimina, o toma para si, o massacra, humilha – e tudo isso constitui uma teologia natural, como é a natural teologia da invasão da Líbia para roubar seu petróleo. O auto-valor vive de roubar o não-valor e é por isso que este existe como não-valor, de modo que é perfeitamente normal o roubo do não-valor, de suas riquezas, de vez que, redundantemente, riqueza é uma questão de valor, do auto-valor do Ocidente, das multinacionais, do mercado capitalista global.

No capitalismo, tudo no auto-valor é roubo do não-valor e, portanto, é uma forma de guerra contra o não-valor. Dessa forma, o sorriso de um ator, num filme da indústria cultural, é auto-valorização do valor e ao mesmo tempo um gesto de negação do não-valor, o qual, roubado, pelas condições de miséria em que vive, da possibilidade de ser portador de sorriso de dentifrício, é assinalado como um não-valor banguelo ou um não-valor carrancudo, ou um não-valor asqueroso.

O auto-valor é o centro, portanto, da perversão e da crueldade. É por isso que, no caso das novelas brasileiras, sobretudo as da TV Globo, o bem é sempre mais perverso que o mal. Consideremos o caso da última novela das 9,Insensato Coração,como não evidenciar a perversão sem limites dos personagens auto-valorizados como bons. É evidente que eram muito piores que os maus aos quais combatiam, como numa cruzada, sem contar que se achavam no direito natural-teológico de perseguir, condenar, humilhar, invadir a casa alheia, num cenário de auto-valorização em que ao mesmo tempo se inscreviam como justiceiros e defensores impolutos da mais-valia, o valor dos valores.

Um Manifesto Comunista contemporâneo

A guerra total contra a vida é a do próprio modelo civilizacional capitalista, da auto-valorização do valor. Nele tudo é guerra, inclusive os estudos, inclusive o sucesso, inclusive o trabalho, inclusive a arte, inclusive a ciência, inclusive o pensamento, inclusive a inclusão, quando implicados com a auto-valorização do valor. Nele tudo é guerra, a evidente, que é a militar, sob o nome de Otan, de forças secretas americanas, de Pentágono; mas também a guerra cultural, programada para auto-valorizar o valor cultural de auto-valorizados perfis econômicos do centro do sistema, em detrimento do não-valor cultural da periferia; mas também é de saber, ao auto-valorizar os saberes consagrados, como importantes, pelo auto-valor da produção capitalista, desprezando ou inferiorizando os saberes manuais, técnicos e estéticos que se inscrevem ou como alternativa, ou como resistência ou como excluído; mas também das subjetividades, quando tomadas pela auto-valorização delas mesmas; mas também midiática, que funciona como caixa de ressonância ou redundância de todos os outros autovalores, razão pela qual a auto-valorização midiática é estratégica para o sistema capitalista, pois serve, hoje, para auto-valorizar o já auto-valorizado.

É por isso que um Manifesto Comunista contemporâneo só poderia ser assim redigido: “Desvalorizados do mundo, uni-vos contra o valor. Não permitis um sistema midiático planetário feito e refeito com o único objetivo de auto-valorizar o valor. Organizai-vos contra o monopólio, o oligopólio e a auto-valorização do poder midiático. Antes de combater governos, multinacionais, exércitos, combatei o sistema midiático, não permitis que tal sistema, sob qualquer pretexto, eleja os eleitos, consagre os consagrados, beneficie os beneficiados, elogie os elogiados, ratifique os ratificados. Antes de decretardes greves na saúde, na educação, na segurança, ou nalgum setor do Estado ou da iniciativa privada, contra algum patrão imediato, decretai greve contra os meios de comunicação de massa, nosso patrão geral implacável, tanto mais porque não o vemos como tal, como patrão, como abutres de nossa carnificina; como auto-valorização do valor que vive, existe e se auto-valoriza com a nossa menos-valia, nosso não-valor, nossa miséria, porque alvo de todos os exércitos que existem para nos roubarem a dignidade, a partir do gatilho de uma câmera, de uma escrita e de um efeito sonoro-visual-gráfico editado com o objetivo de nos amedrontar, ridicularizar, infantilizar, idiotizar, enganar, criminalizar.”

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]