Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Abaixo a ditadura do gancho

Há quem diga que a imprensa vive sob a ditadura dos prazos, dos dead-lines (os horários de fechamento), principalmente agora, com a aceleração alucinada das notícias em tempo real. Costuma-se debitar os erros, as omissões, as trapalhadas e equívocos que custam arranhões ou dilacerações brutais à dignidade e à honra alheias na conta da falta de tempo que impede apuração mais criteriosa.

Tudo isso é verdade. Mas existe uma outra ditadura que pode ser mais perigosa do que a ditadura do dead-line: é a ditadura do gancho. Em jornalismo, ‘gancho’ é o fato que justifica a realização e publicação de matéria ou reportagem. Só para exemplificar: só se justifica a publicação de matéria sobre o preço do bacalhau perto da Semana Santa, quando o produto é mais consumido. Senão ninguém presta atenção. No momento em que se noticia a tragédia do Rio de Janeiro convém publicar matéria sobre as providências que não foram tomadas para evitar a catástrofe. Tem gancho. E nós, jornalistas, caímos de pau nos governantes por não terem se antecipado com medidas capazes de evitar o pior.

É da natureza da imprensa trabalhar sobre os fatos que estão na ordem do dia. Se não existem fatos, a gente busca as efemérides – os fatos programados, datas comemorativas, que salvam muito pauteiro nas horas de sufoco. Mas até hoje fomos incapazes de fazer a nossa parte no que diz respeito à antecipação dos problemas, no apontamento dos riscos, na previsão das tragédias. Noutras palavras: não temos tido a coragem de enfrentar a ditadura do gancho. De todos, talvez o jornalismo antecipatório seja o mais importante, mas ainda é o mais negligenciado. Raramente, muito raramente, jornalistas publicam matérias sobre os riscos disso ou daquilo. O Jornal Nacional divulgou trechos de um documentário de 30 anos atrás, sobre os perigos do lixão do Morro do Bumba, em Niterói. Nem por isso o morro deixou de ser ocupado irregularmente. A chuva chegou e pelo menos duas centenas de vidas foram ceifadas.

Falta criatividade e coragem

Era obrigação da imprensa local ter feito uma, dez, cinquenta matérias denunciando aqueles riscos. E não apenas chorar sobre o leite derramado e por a culpa nos governantes. Igualmente não cabe a desculpa de que os espaços os jornais e das emissoras de rádio e TV estavam ocupados com matérias sobre o que estava na pauta da ordem do dia. Conversa. Toda redação tem crise de pauta. E é nelas que as abobrinhas (os calhaus, como dizemos em nosso jargão) entopem as páginas. Calhau é parte de nosso comodismo. Temos uma parcela de culpa, sim, em relação aos mortos de Niterói. E ela é produto dessa ditadura a que nos sujeitamos, de raramente olharmos para o problema antes que ele cause o estrago. Como escreveu o professor e jornalista Luiz Martins num artigo brilhante publicado no portal da UnB, ‘meteorologistas e jornalistas têm algo em comum, ler o mundo e interpretá-lo: de preferência, antes que o terremoto aconteça e os tsunamis devastem tudo. Pois dizer para quem já está arrasado que houve uma tragédia é zombar da inteligência das vítimas’.

Lamento, coleguinhas, mas tenho de escrever com todas as letras: não temos feito outra coisa. E mais: ou temos criatividade e coragem para romper com a ditadura do gancho ou essa situação não vai mudar nunca.

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Jornalista e professor universitário, Brasília, DF