
(Foto: Robin Higgins/Pixabay)
Recentemente, vimos Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, ser insistentemente silenciada. Após sua fala ter sido várias vezes interrompida pelos senadores e seu microfone frequentemente cortado pelo senador Marcos Rogério (PL-RO), presidente da Comissão de Infraestrutura do Senado, Marina deixou a reunião da Comissão. Ao ouvir ainda que deveria “colocar-se em seu lugar”, a ministra disse: “Você queria que eu fosse uma mulher submissa e eu não sou”. Por mais grave que seja esse episódio, é apenas mais um exemplo do machismo e da misoginia onipresentes no cenário político brasileiro. Seu objetivo mais fundamental é o silenciamento da fala feminina.
Desde as tentativas de interdição e do menosprezo pelo que dizem as mulheres, passando por violências físicas e simbólicas, até os feminicídios, são vários os meios usados para alcançar esse fim. Primeiramente, tenta-se impedir que as mulheres ocupem os espaços de fala; mas se elas ocupam, tenta-se impedir que elas efetivamente falem; mas se elas falam, então tenta-se impedir a escuta de suas vozes; mas se elas forem ouvidas, tenta-se impedir que suas palavras sejam dignas de crédito.
Agora, se elas ocupam esses espaços, falam, são ouvidas e têm suas falas abonadas, formas de silenciamento ainda mais radicais são acionadas. Nunca é o bastante mencionar a atrocidade sofrida por Marielle Franco e, antes e depois dela, por outras mulheres que não se calaram diante de injustiças.
Há uma longa história dessas tentativas de silenciamento da fala das mulheres. No livro A fala feminina: silenciamentos e resistências (Jandaíra, 2025), retraçamos essa longa história, mas também a da obstinada resistência das mulheres a esse ancestral e ainda presente “cala a boca”.
Vejamos aqui alguns exemplos. Um dos mais antigos registros desse silenciamento encontra-se numa passagem da Odisseia, de Homero. Conhecemos seu enredo: Ulisses está voltando da guerra de Troia, enquanto Penélope, sua esposa, está à sua espera, tendo de lidar com muitos pretendentes, que ansiavam por ocupar a posição de seu marido. Certo dia, Penélope deixa a parte mais reservada de sua casa e faz um pedido aos pretendentes, que estavam num pátio externo. Enquanto ainda falava, ela foi prontamente interrompida por seu filho, Telêmaco, que lhe disse: “Agora volta para os teus aposentos e presta atenção aos teus lavores, ao tear e à roca; e ordena às tuas servas que façam os seus trabalhos. Pois falar é aos homens que compete, a mim sobretudo: sou eu quem manda nesta casa”. Ora, a antiquíssima dominação masculina lhe interditava a fala, sustentando que somente os homens teriam competência para falar.
Já entre os medievais, o discurso cristão era muito forte e o texto bíblico uma palavra de ordem. No Gênesis, Eva é a primeira a falar no paraíso. Mas o que ela faz quando adquire o dom da linguagem? Ela convence Adão a pecar. É da imprudência desse gesto que decorrem, por castigo divino, não apenas as dores do parto e a submissão das mulheres a seus maridos, mas ainda nossa própria condição de pecadores: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa”. Foi porque Adão ouviu a voz de Eva que os humanos foram amaldiçoados. Na gênese do mundo cristão, a maleficência da palavra feminina e a escuta que lhe deu crédito provocaram a condenação da humanidade.
Na modernidade, ao lado das Luzes, surgiu uma terrível máquina do silenciamento. Era a chamada gossip bridle (rédea de fofoca), que designava o instrumento usado para torturar, humilhar e silenciar mulheres supostamente tagarelas. Também conhecido como scold’s bridle (rédea das rabugentas), a engenhoca era utilizada muito frequentemente por solicitação dos maridos e se caracterizava por uma estrutura circular de ferro que envolvia toda a cabeça da castigada. A tal estrutura, fixava-se uma chapa que se projetava para dentro da boca e acostava-se à língua das mulheres, que seriam feridas caso tentassem falar. A “rédea” representava, no século XVI, a tentativa de silenciamento da “fofoca”, das supostas palavras indiscretas e maldosas.
Como se vê, as coisas ditas vão construindo práticas e ideias que opõem a “fala feminina” à fala dos homens. De um lado, estariam as alegadas virtudes masculinas da coragem e da prudência, da franqueza e do interesse coletivo; de outro, os supostos vícios da incompetência, dos perigos, dos excessos e das fofocas da fala das mulheres. Nada seria mais justo do que seu silenciamento. Essas e outras ações da antiga e muito atual dominação masculina ainda grassam na política brasileira contemporânea, na qual são incessantes as tentativas de interdição, depreciação e deslegitimação da fala feminina.
Antes do recente silenciamento de Marina Silva, muitos outros ocorrem. A título de mera ilustração, podemos mencionar a condenação da “inconveniente” intervenção de Janja num jantar com o presidente da China. Também recentemente, quando defendia a presença de mais mulheres na política, a vereadora Camila Rosa (PSD), de Aparecida de Goiânia (GO), teve seu microfone desligado por ordem do presidente da Câmara, o vereador André Fortaleza (MDB): “Corta o microfone dessa vereadora para mim. Agora!”. Poucos meses mais tarde, ao mencionar um caso de transfobia ocorrido durante uma sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo, a deputada estadual Mônica Seixas (PSOL) ouviria do deputado Wellington Moura (Republicanos), que presidia a sessão: “No momento em que eu estiver ali, na Presidência da sessão, eu vou sempre colocar um cabresto na sua boca, porque não vou permitir que Vossa Excelência perturbe a ordem dessa Assembleia”.
Não há dúvida alguma: quem tem medo da fala das mulheres é a dominação masculina. Em razão dos silenciamentos que seu machismo e sua misoginia constantemente tentam impor à fala feminina, as lutas pela palavra sempre foram e continuam a ser batalhas decisivas para as mulheres e para os movimentos feministas. Trata-se de uma luta pela própria possibilidade de existir, social e politicamente: não poder falar nem ser ouvida, não ter legitimidade reconhecida em suas palavras nem ser digna de confiança são usurpações própria de um processo de desumanização. Não é por acaso que a chamada “violência política de gênero” – cuja tipificação criminal se deu em 2021, por meio da Lei 14.192 – se dá, muitas vezes, contra o exercício da fala pública das mulheres.
O pleno direito de atuar na vida pública, por meio da produção e circulação da palavra fora dos limites do espaço privado, não é apenas possibilidade de participação nos rumos de uma sociedade, mas é também condição para nossa integral existência humana. Por essa razão, é necessário e urgente identificar e denunciar as práticas de silenciamento que negam às mulheres uma efetiva existência social e política. Conhecer as tentativas da dominação masculina de calar as mulheres, bem como as lutas feministas pela escuta de suas palavras, é um passo decisivo para resistir a uma das mais primárias, mais potentes e mais opressoras relações de poder.
BRAGA, Amanda; PIOVEZANI, Carlos. A fala feminina: silenciamentos e resistências (do Mundo antigo ao Brasil contemporâneo). São Paulo: Jandaíra, 2025. https://www.editorajandaira.com.br/humanidades/a-fala-feminina-silenciamentos-e-resistencias
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Amanda Braga é professora da UFPB, pesquisadora do CNPq e coordenadora do Observatório do Discurso (UFPB/ CNPq). Suas pesquisas tratam de silenciamentos e resistências na história da fala pública das mulheres.
Carlos Piovezani é professor da UFSCar, pesquisador do CNPq e coordenador do Laboratório de Estudos do Discurso (UFSCar/ CNPq). Suas pesquisas tratam do discurso político e da história da fala pública. Foi professor convidado na EHESS/Paris e professor visitante na Universidade de Buenos Aires.