Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A terceirização dos exércitos

(Foto: Specna Arms por Pexels)

A rebelião protagonizada pelos mercenários do Grupo Wagner, no último fim de semana (24 e 25/6), na Rússia, revelou como a terceirização militar tornou-se um fenômeno globalizado e supra ideológico, capaz de transformar ações bélicas em negócios altamente lucrativos, sem qualquer tipo de controle por parte da sociedade civil.

O Grupo Wagner, assim como a empresa Blackwater, dos Estados Unidos, é uma milicia armada, cujos membros atuam numa zona cinzenta da ação militar e usam métodos formalmente considerados “não convencionais” e não contemplados na maioria dos manuais de forças regulares em terra, mar e ar.

O histórico do Wagner e da Blackwater mostra que a contratação de forças paramilitares está associada a massacres que na maioria dos casos passaram impunes pelos tribunais militares convencionais e vários de seus chefes ou integrantes acabaram perdoados como ocorreu com os responsáveis pela chacina da praça Nisour, em Bagdad, em 2007, quando mercenários norte-americanos executaram 17 civis iraquianos desarmados e feriram gravemente outros 20.

A contratação de soldados de aluguel introduziu a informalidade nos conflitos bélicos e se tornou uma ameaça tanto à população civil como até mesmo às forças oficiais de segurança, porque os milicianos não estão sujeitos a nenhum tipo de controle institucional. Eles recebem uma licença para matar em nome de um salário ou da captura de despojos de guerra.

Trata-se de um refúgio seguro para uma escoria de delinquentes, ex-policiais e ex-militares interessados em usar suas habilidades criminosas e a proteção cúmplice das autoridades para tentar enriquecer à margem da lei e de valores sociais. No caso do grupo Wagner, criminosos condenados na Russia ganharam a liberdade para combater na Ucrânia, enquanto a Blackwater contou com farto suprimento de imigrantes ilegais centro-americanos que aceitaram ir para o Iraque em troca de um visto de residência nos Estados Unidos.

Um negócio em expansão

A globalização do fenômeno das milicias atinge hoje além da Ucrânia, onde atua o Wagner pelo lado russo, e o Esquadrão Azov pelo lado anticomunista, mais vários outros países onde ocorrem conflitos sangrentos como as repúblicas do Mali, Mauritânia e República Centro Africana. Uma rápida consulta à Wikipedia mostra que nove países em quatro continentes abrigam empresas que contratam mercenários. O site lista 32 organizações paramilitares em operação em todo mundo. Quinze delas sediadas nos Estados Unidos, seis no Reino Unido e cinco na Rússia. A empresa peruana Defion International, é a única latino-americana nesta lista. Ela contratou mercenários para lutar no Iraque para e empresa norte-americana Triple Canopy.

Mas o fenômeno tem ainda uma faceta política e outra corporativa. Política, na medida em que os governos recorrem à mercenários para executar ações fora dos limites legais e das normas internacionais, como por exemplo, a Convenção de Genebra sobre respeito à prisioneiros políticos. Corporativa, porque os mercenários livram as forças armadas regulares de envolvimento em guerras impopulares e de prestar contas à sociedade sobre mortes e mutilados de guerra.

A expansão do negócio da locação de milicianos permite também aos comandos militares regulares de manter sua próspera participação na indústria armamentista que passou a ser uma atividade complementar às funções estabelecidas constitucionalmente.

As milicias e exércitos privados se alimentam do caixa 2 dos governos aos quais estão ligados, o que fornece indícios de como a contabilidade oficial contém mais furos que um queijo suíço. Operações do Wagner ou da Blackwater não passam pelo crivo legislativo e nem sempre contam com as simpatias dos comandos militares regulares. O motim do grupo Wagner visava derrubar o comandante do exército russo, general Valery Gerasimov, tachado de incompetente pelo ex-cozinheiro Yevgeny Prigozhin, chefe dos mercenários. Foi a criatura se rebelando contra o criador.

Para os civis, a proliferação dos exércitos de aluguel cria um dilema crucial porque as sociedades estão sendo marginalizadas no processo de tomada de decisão sobre conflitos militares. A contratação de mercenários em lugar da mobilização de forças regulares cria um submundo bélico imune à controle pelos poderes legislativo e judiciário, criando uma ameaça potencialmente letal à democracia.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.