Saturday, 14 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Numa guerra, também as palavras matam

 

E a melhor evidência desta constatação está na polêmica mundial em torno do uso das expressões ‘terrorista’ e ‘terrorismo’. A batalha verbal envolvendo governos, organizações e indivíduos colocou em segundo plano as causas e as consequências da guerra entre Israel e o movimento palestino Hamas.

Uma polarização que começa a contaminar o nosso cotidiano como no caso de refugiados afegãos em São Paulo, agredidos por transeuntes porque pareciam terroristas árabes, ou como no confuso incidente num aeroporto russo onde judeus foram atacados na escala de um voo para Moscou.

A guerra das palavras surge quando uma mesma expressão passa a ter significados distintos conforme as opções político-ideológicas de quem as usa na imprensa ou em pronunciamentos oficiais. Terrorismo é uma tática política envolvendo atos de violência física ou psicológica, adotada por um país, partido ou organização ideológica para promover suas reivindicações ou ideias.
Quando usada para qualificar alguém ou alguma instituição, a mesma palavra assume características distintas e configura um rótulo político e ideológico. É esta confusão entre definição e posicionamento que está na origem das diferenças de uso das expressões ‘terrorismo’ e ‘terrorista’ no noticiário produzido por organizações jornalísticas como a agência de notícias Associated Press (AP) e emissoras de TV como a canadense CBC e a britânica BBC.

Uma organização, partido ou movimento podem promover uma causa política e ocasionalmente, dependendo das circunstâncias, adotar o terrorismo como uma tática para lidar com obstáculos pontuais. A AP trata o Hamas como um movimento político, alegando que o objetivo estratégico da organização é reconstituir a Palestina e que o terrorismo é um recurso pontual. A distinção é relevante porque evita associar uma causa estrutural permanente a um ato ou tática conjuntural transitória.

Os defensores do sionismo passaram por esta experiência. Eles adotaram o terrorismo entre os anos 1931 e 1948, quando os movimentos Irgun e Haganah enfrentaram tropas coloniais inglesas na luta pela criação do estado de Israel. Respeitados líderes judeus, como o ex-primeiro-ministro Menachem Begin, foram adeptos do terrorismo quando militavam no Irgun, mas depois de terem atingido seus objetivos políticos deixaram de ser tratados como tal e ganharam respeitabilidade inclusive entre seus antigos inimigos. Situação similar ocorreu em vários outros países como foi o caso da África do Sul, onde o ex-presidente Nelson Mandela era classificado como um líder terrorista antes de ser mundialmente respeitado com defensor da igualdade racial.

O uso político das expressões terrorismo e terrorista faz parte do arsenal da retórica beligerante de governos e partidos, mas é injustificável quando empregado por jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, ou sites noticiosos na internet. Isto porque implica uma tomada de posição do veículo jornalístico, comprometendo a percepção que seus respectivos públicos terão sobre os fatos e eventos publicados.

A imprensa como instituição pode escolher livremente como deseja se posicionar diante do terrorismo como estratégia política, mas na hora de produzir notícias para consumo do público, os jornais, revistas, sites e telejornais não podem usar o qualificativo terrorista para definir personagens e organizações. Isto equivale a induzir um julgamento prévio, conforme afirmou Chuck Simpson, principal assessor do vice-presidente da Canadian Broadcasting Company (CBC), a TV pública do Canadá, com status equivalente ao da BBC inglesa, em declarações à revista norte-americana a Mother Jones.

A complexidade do uso da expressão terrorismo levou a imprensa mundial a tomar diferentes posicionamentos diante do problema. O The New York Times, inicialmente classificou o Hamas como terrorista, depois passou a chamar seus membros como militantes armados e mais recentemente voltou a usar a denominação ‘terroristas’. O The Los Angeles Times classificou a captura de reféns israelenses como um ato terrorista, mas se refere ao Hamas como movimento político. Já a rede Al Jazeera trata os membros da Hamas como combatentes enquanto o jornal britânico The Guardian evita o uso de qualificativos alegando que “um mesmo indivíduo pode ser terrorista para alguns e combatente da liberdade para outros”.

Aqui no Brasil, a grande imprensa é unanime em definir o movimento palestino que controla a Faixa de Gaza como organização terrorista, atitude que foi seguida pela maioria dos jornais latino-americanos, ao contrário do que ocorre na Europa e na Asia, onde não há uma unanimidade sobre a forma de tratar a organização palestina. A diversidade de posicionamentos na questão do terrorismo mostra como os executivos da imprensa estão mais preocupados em marcar seu posicionamento ideológico do que com as consequências, eventualmente letais, que determinadas expressões podem ter junto a leitores, ouvintes, telespectadores ou internautas.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.