Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os ratos que pulam do barco, ou quem define o que se pode falar?

(Foto: Florante Valdez/Pixabay)

Quando fui convidado para bater esse pequeno texto, recaiu-me uma dúvida. A indagação do articulista muitas vezes é como começar, se o porquê começar já lhe acompanha. O porquê, no caso, era imperativo. A dicotomia liberdade de falar, de transmitir, de ressoar com o quê se fala, como se fala e por qual razão se fala. 

Talvez os primórdios discursivos do cerceamento da fala sejam ainda mais longevos do que pensamos, e menos explícitos que a poética apresentada. Na festejada ágora todos podiam se manifestar, desde que fossem iguais. Será que a celebrada democracia ateniense, calcada na premissa do poder falar e, disso, exercer a democracia, nada mais era que um verniz excludente? Mulheres, escravos, infantes, ou melhor, os que não completavam a tríade branquitude, masculinidade e propriedade estavam fora desse jogo. 

Jogo. Tratemos disso. 

Numa Goiânia ensolarada, o espectador ávido pelo futebol do pequi – e me autorizo a fazer tal anedota, tanto por ser orgulhosamente goiano, quanto por amar pequi e futebol –  acabara de desligar o rádio após mais uma edição do diário programa esportivo da Rádio Jornal – hoje rádio Bandeirantes – quando cinco tiros alvejaram o ferrenho crítico Valério Luiz, comentarista que estava no ar até pouco antes do fato. 

Um comentarista de futebol ensanguentado em pleno centro de Goiânia. Por quê? Sempre essa junção de preposição com pronome interrogativo. 

Segundo sentença do TJGO anunciada na tarde do dia 09/11/2022, “o crime foi premeditado e com o propósito de calar a vítima, que exercia sua liberdade de expressão na condução de jornalista esportivo”.

Na véspera dos fatos de 05 de julho de 2012, Valério Luiz na PUC TV, outra emissora na qual laborava, criticou a diretoria do Atlético Goianiense que se desintegrava: “quando o barco está enchendo de água, os ratos são os primeiros a pular fora”. 

A mensagem tinha direção: Maurício Sampaio, então vice-presidente do clube que acabara de renunciar em função dos maus resultados do time na Série A do Brasileirão.

Segundo o MPGO, foi o estopim. Disso, Maurício Sampaio decidiu mandar assassinar Valério Luiz. E tal como encomendado, foi feito. 

10 anos após os fatos o Tribunal do Júri de Goiânia condenou Maurício Sampaio a 16 anos de prisão por homicídio. Os demais denunciados Urbano de Carvalho Malta, acusado de contratar o policial militar Ademá Figueredo para cometer o homicídio, o próprio Ademá, e Marcus Vinícius Pereira Xavier, que teria ajudado os ajudados a planejar o homicídio, também receberam título condenatório. 14, 16 e 14 anos de pena respectivamente. 

Apenas Djalma Gomes da Silva, que foi acusado de ter auxiliado no planejamento do assassinato e atrapalhado as investigações, foi absolvido.

Maurício Sampaio foi ao limite da resposta às críticas recebidas. A vida, bem que não se compensa, nem se retoma, foi o preço pago por Valério Luiz.

O exemplo é radical, mas são dos exemplos radicais que evoluímos e retroagimos. 

Habermas, quando fala da esfera pública europeia no seu Mudança Estrutural da Esfera Pública, deixa bem claro que seu trabalho foca na esfera burguesa, e todas as características de classe que ela carrega. Ele delimita aquela esfera àquele grupo. 

É desse espaço de iguais entre iguais que se desenvolvem as ideias que, por derradeiro, recairá nos não iguais. 

A questão aqui talvez seja quando o não igual quer falar e quando o não igual radicaliza. John Stuart Mill desenvolve seu livre mercado de ideias como um debate entre várias compreensões sobre um fato ou uma escolha social em que o questionamento sob uma ideia perante outras ideias levará à vitória de uma destas que sempre e constantemente será forçada até sua troca. Vence o melhor produto, se levarmos em conta o liberalismo econômico que perpassa por todas as ideias de Mill.

Tais ideias ressoam e permitem, talvez, que ideias absurdas sejam explanadas. 

Quando a Jovem Pan sustenta Ana Paula Henkel no ar e retorna Rodrigo Constantino após ele dizer que castigará sua filha se esta fosse estuprada bêbada [1], ela legitima, pelo jornalismo, essas compreensões. Legitima?

A Folha de S. Paulo tem o hábito de manter dentre os seus articulistas pensamentos absolutamente díspares. 

Conrado Hubner chamou Augusto Aras de Poste Geral da República e disse em artigo duro que “Augusto Aras integra o bando servil. Enquanto colegas de governo abrem inquéritos sigilosos e interpelam quem machuca imagem do chefe, Aras fica na retaguarda: omite-se no que importa; exibe-se nas causas minúsculas; autoriza o chefe a falar boçalidades mesmo que alimente espiral da morte sob o signo da liberdade [2].”

Aras não mandou meter bala em Conrado, como feito por Maurício. Processou. Perdeu em primeira instância, vem ganhando em recurso [3]. 

Voltando à Jovem Pan, seus jornalistas foram proibidos de se referir ao então candidato Luís Inácio Lula da Silva com certos termos: Ex-presidiário; Descondenado; Ladrão; Corrupto; Chefe de organização criminosa [4]. O argumento do TSE é que o comportamento da emissora, nas eleições, desnivelava o jogo eleitoral a dar tratamento distinto a um candidato em benefício a outro. O TSE, então, julgou e proibiu, previamente, os jornalistas a usarem esses termos. Adjetivações, destaca-se. 

A ABRAJI relatou que em 2021 houve crescimento de 26,9% em ataques contra jornalistas e veículos de comunicação comparado ao ano anterior [5].

Há a baixa e mais visível forma de silenciar, como feito por Maurício Sampaio. E os instrumentos velados que, muitas vezes, estão no telefonema para o dono do veículo ou no uso do aparato judicial para tanto. 

Há uma ampliação do uso do Poder Judiciário e das instituições investigativas para sancionar e punir profissionais de imprensa que divulgam fatos e contextos que venham a prejudicar a imagem ou o poder da elite nacional. 

Esta elite passa a se valer da máquina que controla para perseguir e evitar a prática jornalística, causando aquilo que a Supreme Court dos Estados Unidos cunhou, ainda nos anos 1964, de chilling effect: a imprensa, para evitar condenações, opta por adotar postura defensiva no exercício do poder-dever de informar. 

Na visão de Eric Barendt (1997) o chilling effetc se verifica quando o jornalista ou o jornal altera um material polêmico ou sensível – chilling effect direto –, ou deixa de publicá-lo – chilling effect indireto –, parar evitar possíveis consequências jurídicas.

A Jovem Pan recomendou a seus jornalistas que não criticassem o TSE ou o presidente Lula.

Talvez se Valério Luiz não tivesse comparado Maurício Sampaio a um rato estaria vivo. E esse texto seria diferente. 

É o jogo. 

Aí está o problema. O jogo. 

Há hoje uma preocupação, válida, imensamente válida, com fake news, falsa informação, responsabilidade e controle dos excessos. A academia assumiu esse papel e vem discutindo as liberdades de expressão e imprensa no viés das responsabilidades.

Ocorre que quem define a verdade, quem define o excesso?

Maurício Sampaio definiu o excesso. O TSE definiu o excesso. Augusto Aras definiu o excesso. Triplamente definido, triplamente executado. 

Certo ou errado? Esse articulista é um saudosista da Jovem Pan de Joseval Peixoto e Cláudio Carsughi, do “Hora da Verdade”, a verídica sem “Pingos nos Is”, que ouvia no interior de Goiás pelo 750 AM nos idos de 2009. 

A Jovem Pan de hoje não me representa, preferia a Velha Pan.

Mas me cabe definir a Jovem Pan? Cabe ao TSE tutelar o que se diz? Ou cabe ao ouvinte fazê-lo?

Você, leitor, poderá dizer que a saída ora apresentada é a via fácil e não abarca a complexidade dos problemas do tema. Sim, ela é. 

Colocar ao ouvinte o único parâmetro de escolha de aprovar ou desaprovar com o seu direito a tecla do controle ou à mudança do dial é mais fácil e muitas vezes preguiçoso. Assumo aqui os defeitos desta reflexão. 

A questão é, quem tutela o que chegará? Quais os interesses de quem o faz? Seriam todos autênticos? Não imaginemos que a mídia não tenho seus vícios e seus defeitos. Mas pior ou melhor controlá-la?  

Lorde Acton nos dizia “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus.”

André Barrocal, da Carta Capital, foi alvo de tentativa de censura judicial por parte de Augusto Aras ao ser processado por texto que comparava o PGR a cão perdigueiro. Neste caso específico a Justiça protegeu o jornalista, não a autoridade pública.   

O texto que se apresenta, o primeiro deste articulista depois de anos neste Observatório da Imprensa e o primeiro neste projeto do grupo Jornalismo Direito e Liberdade é muito mais uma provocação – autoprovocação, inclusive – sobre os limites e como o jogo dialético e de versões se força no debate público.

Provocações servem para reconhecermos erros e acertos, avançar e recuar. Faltam certezas, multiplicam-se dúvidas. 

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Notas

[1] https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/redacao/2020/11/04/constantino-afirma-que-castigaria-filha-se-ela-sofresse-estupro-bebada.htm  

[2] Aras e a antessala

[3] http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2022/06/e-uma-pratica-de-intimidacao-e-de-silenciamento-diz-conrado-hubner-sobre-acao-de-aras/

[4] Profissionais da Jovem Pan não podem mais usar termos ofensivos contra Lula

[5] Ataques contra jornalistas e meios de comunicação crescem 26,9% em 2022 

[6] Com medo do TSE, Jovem Pan orienta comentaristas a parar de xingar Lula

[7] STJ arquiva queixa-crime de Augusto Aras contra jornalista

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Bruno Henrique de Moura é jornalista e advogado formado pela UnB. Estuda Liberdade de Expressão e preside a Associação Brasiliense de Cronistas Desportivos (ABCD).