Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Homicídios na política

O conjunto de reportagens de Leonencio Nossa publicado no domingo (13/10) no Estado de S. Paulo sob o título “Sangue político – As mortes nas disputas pelo poder na era democrática“ mostra o peso que pode ser dado ao jornalismo de qualidade na batalha pela atenção desse ser esquivo, o leitor.

O material se mantém a notável distância do costumeiro sensacionalismo. A apuração é impecável. O texto é claro, requisito que a geleia geral internáutica anda perturbando, não no jornalismo de televisão, onde a inteligibilidade é decisiva, mas na mídia periódica impressa. (Em muitos casos, não se trata de problema estilístico, mas de característica da estrutura mental dos respectivos jornalistas.)

Mais do que isso, e aqui temos um atributo do repórter, que já o fizera em outras ocasiões – inclusive no livro-reportagem Mata! O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia, resenhado neste Observatório em “Guerra e guerrilhas do Araguaia“ –, as informações são projetadas contra o pano de fundo da história brasileira.

Ligações perigosas

Uma constatação alarmante que se tira da leitura é quanto ao grau de envolvimento de grande parte das maiores lideranças políticas do país com o crime organizado, em alguma de suas diferentes modalidades (elas se comunicam). Isso explica, em boa medida, por que “dois terços dos inquéritos policiais não apontam nem autor nem mandante”, título de uma das retrancas.

Nominalmente, aparecem na reportagem Lula, Dilma, Eduardo Campos, Michel Temer, Ciro e Cid Gomes, Henrique Eduardo Alves, Renan Calheiros, Sérgio Guerra, Agripino Maia, Garibaldi Alves e vários outros. Todos dirão, sem razão, que ignoravam a folha corrida desses políticos da planície que lhe trazem votos e aos quais, reciprocamente, dão apoio.

O caso de Eduardo Campos é especialmente dramático, num momento em que se une a Marina Silva para constituir o que seria uma alternativa à bipolaridade PT-PSDB, que virou sinônimo de política velha no Brasil.

“Se não fosse a aliança com [Sérgio] Guerra, os Martins estariam totalmente integrados ao projeto do governador Eduardo Campos, do PSB, que vive assediando a família”, relata Nossa num texto que começa assim: “Os irmãos Juliano Martins, de 25 anos, e Claudiano Martins Filho, o Cacau, de 24, eram garotos em 2000, quando viram o pai, o ex-deputado estadual Claudiano Martins, algemado e preso, acusado de chefiar a pistolagem no agreste de Pernambuco”.

 

A especificidade pernambucana

Mais do que uma crítica – incontornável, embora Campos tenha credenciais respeitáveis de diferentes pontos de vista –, veja-se aqui a constatação de uma herança pesada, secular: a política velha no Brasil é bem mais velha do que a polarização PT-PSDB, Arena-MDB, PSD-UDN ou PSD/UDN-PTB. E isso o jornalista explicita com maestria, especialmente no caso de Pernambuco.

A violência em Pernambuco é arraigada, intensa, difusa. Quase aceita como uma fatalidade com ressonância de mito grego (vejam o excelente O som ao redor, filme de Kleber Mendonça Filho).

Na terceira das 12 páginas do suplemento dedicado à reportagem, um grande mapa do Brasil traz a geografia dos 1.133 crimes computados pelo repórter. Vê-se uma mancha que cobre o território de Pernambuco e se espalha por estados vizinhos.

Pernambuco tem a triste marca de estado onde foi maior o número de mortes entre agosto de 1979 e agosto de 2013: 210 homicídios catalogados no trabalho de Nossa. Isso corresponde a 18,5% do total de mortes, mas o estado tem hoje apenas o equivalente a 4,5% da população brasileira, e não teve mais do que isso em cada um dos 34 anos transcorridos desde o ano inicial da contagem.

A influência de Pernambuco é patente em Alagoas, onde a economia ainda gira em torno da cana-de-açúcar, como ocorreu durante a maior parte do tempo no estado vizinho: 114 homicídios, 10% do total, para uma população que equivalia na mais recente estimativa (1 de julho de 2013) a 1,6% dos habitantes do país.

Inversamente, São Paulo, com 63 mortes, tem só 5,5% do total, embora sua população corresponda hoje a uma fatia de 21,7% do total do país. O estado recebeu imensas legiões de migrantes nordestinos, mas a cultura política municipal é aí menos sangrenta, embora muito corrupta e bastante truculenta.

Contra a escola

Uma explicação dada na reportagem que merece ser meditada: o aumento de recursos destinados aos municípios por força das disposições da Constituição de 1988 acirrou disputas. Extremamente preocupante é a informação, do presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkovski, de que entre as verbas mais cobiçadas estão as do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, Fundeb.

Alguém acredita que um país com essa realidade tem chance de se desenvolver – na acepção correta da palavra?

Pistolagem eletrônica?

Outro obstáculo, não tratado na reportagem mas que seria importante apurar, é o da ligação desse tipo de política suja e violenta com meios de comunicação locais. Há muito se denuncia o coronelismo eletrônico (este Observatório da Imprensa entregou ao então vice-procurador-geral da República, Roberto Gurgel, um dossiê sobre o assunto há oito anos; ver um apanhado em “Radiodifusão, política e comércio“). O coronelismo é indissociável da pistolagem.

Os gravatas da política

Ainda uma pauta subproduto da reportagem é a denúncia do senador Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB paulista, segundo a qual uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES), com o objetivo de encerrar na segunda instância o trâmite de processos criminais e, portanto, impedir a interposição de recursos que mantêm fora da cadeia condenados por esses homicídios, à espera de manifestação do Tribunal Superior de Justiça ou do Supremo, está parada no Senado devido a pressão contrária de escritórios de advocacia: “Os grandes escritórios de advocacia que estão na cúpula da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) têm interesse em levar as causas para os tribunais superiores”, declara Nunes Ferreira.

A esse interesse se une o de políticos beneficiários diretos ou indiretos dos crimes. Um coletivo amplíssimo cujos limites invadem os palácios onde trabalham os chefes dos poderes executivo e legislativo federal, de estados e municípios.