Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Onde se deu o massacre das crianças?

Você saberia identificar um ‘beótio’? Originalmente, os ‘beótios’ habitavam a ‘Boétia’, província da Grécia. Os dicionários (ou seriam ‘ditionários’?) registram beócio, beócios e Beócia. Sabe onde fica a Escótia? Não pode saber. Entre nós, o país é conhecido como Escócia.

Mas entre nós os beócios são em grande número – ou seriam ‘beótios’? – e, com o rebaixamento de critérios para ocupar os cargos, eles proliferam na imprensa, em escolas e em universidades, onde alguns deles são editores, chefes de redação, diretores, reitores etc. Desprezam comezinhas lições do bom senso e da intuição, mas desprezam principalmente a quem sabe. Por que não perguntam quando não sabem? Perguntar deve ser o principal ofício na imprensa. O repórter pergunta para poder responder aos leitores.

Adjetivo pátrio

Beslan, na Océcia (ou Osséssia) do Norte, república pertencente à federação russa que emergiu da queda da URSS, é uma pequena cidade de 30.000 habitantes, situada na região do Cáucaso, vizinha à Chechênia. Foi lá que na semana passada o terrorismo internacional mostrou a sua face mais cruel: o assassinato, em larga escala, de mais de 300 reféns numa escola, muitos deles crianças.

Não bastassem todos os problemas – alguns deles incontornáveis – para informar o distinto público sobre o que estava acontecendo, houve mais um: o local do crime. Como designá-lo?

Alberto Dines foi o primeiro a levantar a questão, no artigo ‘A guerra absoluta’:

‘A maioria das pessoas que ouvia os rádios mal sabia onde ficava Gdinya (ou Dantzig?) naquela manhã de 1º de setembro de 1939 e, no entanto, a 2ª Guerra Mundial começava naquele momento quando o rolo compressor dos blindados nazistas acabou com o ‘corredor polonês’ e retomou aquele porto no Báltico’.

A revista Veja optou por dar chamada de capa à cidade: ‘Beslan, Rússia’. Mais ou menos como citar qualquer cidade brasileira de porte semelhante e localizá-la na América do Sul, sem mais detalhes. Nas páginas internas, manteve Ossétia. Quanto ao adjetivo pátrio, optou por osseta:

‘Os ossetas são na maioria cristãos, convivem pacificamente uns com os outros e até usufruem certa prosperidade, apesar de sua república figurar entre as mais pobres da federação’.

História antiga

As vacilações na grafia seguiram a lei dos locutores esportivos, que durante anos narraram os jogos do Brasil com a Alemanha referindo-se ao célebre meio-de-campo alemão como Mataus. O nome dele era e é Mateus – Mathäus, em alemão. É de um divertido horror ouvir as transmissões esportivas quando o Brasil enfrenta seleções estrangeiras. Os tropeços começam pelo espanhol, estendem-se pelo inglês, pelo italiano, pelo francês, pelo alemão e seguem, sempre aprofundando as dificuldades, pelos idiomas estranhos à nossa prosódia, sem contar os inevitáveis cacófatos quando enfrentamos times asiáticos, principalmente japoneses.

Aqueles que escrevem Ossétia, por coerência deveriam escrever Escótia e não Escócia. E deveriam mudar o nome do célebre filósofo Boécio – do latim Boetius; os franceses grafam Boétie – para Boétio. E em vez de se comportarem como beócios, que tal se assumissem de vez que são apenas ‘beótios’?

Em casos semelhantes, em vez de seguir o tortuoso caminho da invenção por conta própria, por que não adotar o recurso da analogia, do latim analogia (proporção, relação, simetria, semelhança, conformidade) e do grego analogía, de significado semelhante?

Esta história é antiga. A Líbia sempre contou com muitos chefes de estado: Kadafi, Khadafi, Gadafi, Gadhaffi – eis alguns deles. Ele era e é um só – ainda é o mesmo – mas o seu nome é legião.