Monday, 13 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Uma agência do Departamento de Estado?

Claro, mesmo que nem sempre assim o seja, que um pedaço da laranja é suficiente para sabermos que chupamos uma laranja, tendo em vista a nossa mais primária vivência gustativa. Claro que o óbvio ululante é tão óbvio que, muitas vezes, já não sabemos mais que seja tão óbvio assim, pelo simples fato de estarmos mergulhados nele, mais que colados.

Claro que a função da ideologia, no sentido de falsa consciência, é a de fazer-nos ver, seja lá o que for, para não mais enxergarmos, o que equivale a olhar e não ver, ou ver para cegar-nos.

Claro que esta é a função ideológica dos meios de comunicação de massa, nas sociedades pop-imperial-bélico-icônico-midiáticas, como a nossa: divulgar a juventude, para que não vejamos um mundo caduco, de sarados corpos viris, mas tão velhos quanto os preconceitos; divulgar os brilhos, das e nas cores, para que não vejamos o quanto tudo está tão cinza – fumaça de bombas literais, culturais e econômicas; divulgar a diversidade, sob o prisma dos direitos civis, para poucos, a fim de que não vejamos que o comum direito ao comum – alimentação, moradia, água potável, saúde, educação, transporte – constitui a base de tudo, motivo pelo qual, sem a comum inserção-criação do comum, toda diversidade é farsa de diversidade, a não ser no caso em que atue para, através, no e pelo comum; divulgar o moralismo da corrupção de fulano ou de sicrano, para que não vejamos que a corrupção é regra geral, numa sociedade em que o comum está corrompido por aberrações como monopólios, oligopólios, concentração de renda, dólar como moeda planetária, Wall Street, Federal Reserve do Brasil, da Argentina, do México; divulgar-denunciar políticos, situados em relações de força que favoreçam o campo progressista, para que não vejamos os pactos de traição, à soberania dos povos, dos políticos de direita; para que não vejamos a atuação genocida de multinacionais, a massacrar iraquianos, os africanos, colombianos, brasileiros, indígenas, e assim por diante; divulgar-denunciar salários de funcionários públicos, para que não vejamos os escandalosos salários de alguns astros do esporte, do cinema, de Faustões, Gugus, Xuxas, Hebes, Ratinhos, William Bonners; para que não venhamos a saber que, antes do setor estatal e privado, deve existir a dimensão pública, que é aquela que compreende que riqueza concentrada é riqueza roubada, venha de onde vier, esteja sob a posse de quem estiver.

‘Gente muito boa’

Claro que, tendo em vista a primeira premissa deste artigo, a de que um pedaço da laranja é parte indubitável de, pelo menos, algo que fora um dia uma laranja, basta ligar a Rede Globo de Televisão, em qualquer horário, com os olhos – ou paladar – livres, para termos a certeza, igualmente inquestionável, de que estamos diante de um canal de televisão a serviço do imperialismo americano, posto que toda a programação do canal da família Marinho tem o conteúdo e a forma do modelo do capitalismo estadunidense.

Claro que, assim como existem, por inúmeras razões, momentos em que um pedaço de uma laranja é mais laranja do que nunca, existem, também, por motivos diversos, situações em que o óbvio fica mais obvio do que nunca, diante desta evidência: a Rede Globo de Televisão está a serviço, consciente e/ou inconsciente, do imperialismo bélico-cultural americano.

Se, a propósito, ligamos a Rede Globo de Televisão, no fim de semana, para assistir filmes, estaremos diante de um momento desta evidência inquestionável: eis aí uma televisão a serviço do imperialismo americano, porque, basicamente, veremos filmes, produzidos pela indústria cultural de Hollywood, com dois traços básicos, opostos e complementares ao mesmo tempo, a saber:

** Um primeiro, ora transmitido sábado, após Zorra Total, ora vindo ao ar domingo à tarde, geralmente antes do Programa do Faustão, cujo gênero poderia ser chamado de lírico-familiar-intimista-individual, por contextualizar narrativas amorosas, envolvendo personagens típicos da classe média americana, cujos membros não apenas gozam, individualmente, de plenos direitos civis, assim como são bonitos, felizes, bem sucedidos, consumistas e politicamente corretos, configurando, num conjunto, uma propaganda lírico-dissimulada não apenas do cidadão americano médio, mas antes de tudo do cotidiano estadunidense, como que a dizer, para os quatro cantos: ‘Olha aqui como essa história de que os Estados Unidos fazem guerra, para defender interesses mesquinhos, contra outros países, é uma mentira; não pode ser verdade pelo simples motivo de que o americano é gente muito boa!’

Jogo repetitivo

** Um segundo, geralmente transmitido domingo à noite, após o Fantástico, cujo gênero pode melhor ser designado como dramático-épico-bélico, sendo ao mesmo tempo oposto e complementar ao primeiro, o lírico-familiar-intimista-individual, porque, diferentemente do primeiro, daí o contraste opositivo, não é intimista, nem familiar e nem individual, por ser exterior às fronteiras americanas, (quase sempre o espaço da narrativa é contextualizado fora dos Estados Unidos, em situações de combate); por heroicizar personagens que representam diversos segmentos da hierarquia do complexo estatal-financeiro-industrial-militar americano; por ter um traço antes de tudo identificado com o que pode ser caracterizado como coletivo unido, em nome do bem comum, momento em que se torna complementar à primeira tipologia fílmica, porque o bem comum, nesse caso, nada mais é que o espaço dos direitos civis consumistas do americano médio; nada mais é, assim, que o cotidiano democrático-publicitário em que supostamente vive o individualismo dispendioso, narcisista, intimista, amoroso e lírico-familiar, representado pelo americano médio, razão pela qual, a segunda tipologia fílmica, a dramático-épico-bélica, deve unir toda sua força, com estratégia e paixão, para vencer os inimigos, geralmente árabes, russos, chineses, africanos e latino-americanos.

Claro que não pode ser mera casualidade esse ideológico jogo repetitivo entre o gênero lírico-familiar-intimista-individual e dramático-épico-bélico, presentes, praticamente, em todos os finais de semana, na programação fílmica da Rede Globo de Televisão.

Mundo de atos secretos

Claro que existe algo de podre no reino de Dinamarca; que é muito óbvio para ululante.

Claro que a Rede Globo de Televisão não é a única que está a serviço do imperialismo americano. Todas as tevês abertas e privadas brasileiras também estão, pois fazem parte da mesma unidimensional plataforma ideológica da sociedade do espetáculo colonizadora-imperial, ou democrático-liberal-ditatorial, americana.

Claro que não são apenas as TVs privadas brasileiras que estão a serviço, através de uma servidão voluntária – mas nem sempre – do imperialismo cultural americano, de vez que, praticamente, todos os países do mundo apresentam situações, sob o ponto de vista televisivo, semelhantes à do contexto midiático-oligopólico brasileiro. E a razão é muito simples: a sociedade do espetáculo imperial é planetária, global.

Se aqui pego no pé da Rede Globo é porque, antes de tudo, constitui um canal de televisão que tem, no Brasil, uma longa história a serviço do imperialismo americano, utilizando, para tal, tanto o dispositivo das narrativas lírico-familiar-intimista-individual – inclusive tendo como exemplo as novelas genuinamente brasileiras -, como o dispositivo dramático-épico-bélico, levado a cabo, geralmente, através das montagens informativas-desinformativas, do telejornalismo global, elas mesmas dramático-épico-bélicas.

Por tudo isso, e muito mais, que pretendo demonstrar em outros artigos, pergunto: a Rede Globo de Televisão não será, num mundo de tantos atos secretos, mais uma dessas agências secretas do Departamento de Estado estadunidense?

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Professor da Universidade Federal do Espírito Santo, poeta e escritor, Serra, ES