Sunday, 12 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Uma confusa ‘democratização da comunicação’

O uso da expressão ‘democratização da comunicação’, no documento aprovado em 19/11 pelo Diretório Nacional do PT, presta-se (destina-se?) a leituras equivocadas. Repare só nas frases seguintes do documento, ilustre leitor: ‘Caberá ao partido, ainda, ajudar na renovação da cultura política do país. Respeitando a liberdade de imprensa e de expressão, o PT tem de realizar um debate qualificado acerca do conservadorismo que se incrustou em setores da sociedade e dos meios de comunicação. Medidas essenciais para superar o descrédito de amplos setores de nossa sociedade para com partidos e instituições.’

Façamos uma análise compassada.

1) Renovar a cultura política do país. É em nome dessa renovação que se desdobram os itens seguintes. Deve-se anotar que o PT já ajudou a fazê-la, mas regressivamente, ao conviver alegremente com alentado leque de bandalheiras e outras práticas de exibição não recomendadas para menores.

2) Um debate sobre o conservadorismo que se incrustou (quando?; meu palpite: na gênese do regime escravagista) em setores da sociedade e dos meios de comunicação não deve desrespeitar a liberdade de imprensa e de expressão (por que o faria?; debater tolhe alguma coisa?).

3) Essas são medidas essenciais para superar o descrédito que cerca partidos e instituições (inteiramente risível: a imagem dos partidos formados por trêfegos, a avacalhação da Câmara dos Deputados e do Senado, de Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais não decorreria de malfeitos, mas de ‘descrédito’; ‘amplos setores de nossa sociedade’ servem para eleger a candidata Dilma Rousseff, mas não para ter uma visão crítica da cena político-institucional).

Sensacionalismo e escracho

Mas a que se refere o documento quando fala em ‘democratização da comunicação’? Ela está cerceada? Em grande medida, não. Qualquer um é livre para lançar jornal, revista, saite, blogue, tuíter, o escambau. Pode-se dizer o que se quiser dessas mídias, mas não que elas careçam de liberdade. Liberdade, aliás, para escrever muita barbaridade. Como sempre ocorreu, desde o advento da palavra escrita. O que não é desculpa para estultices e delírios.

Existem problemas com as concessões de rádio e televisão? Existem. Graves.

Para começar, coronelismo eletrônico, sobre o qual há farta literatura qualificada neste Observatório.

Além disso, confissões religiosas controlam um naco cada vez maior da radiodifusão. O Estado brasileiro é teoricamente laico, mas associa-se a empresas criadas por igrejas (o ato de conceder um canal de rádio ou televisão não exime a União de corresponsabilidade pelo uso que é feito da concessão; daí poder-se falar em associação).

E mais: nas vertentes pública e estatal faltam competência e recursos para a prestação de um serviço mais qualificado.

Finalmente, as redes de televisão independentes: Globo, Bandeirantes, SBT, RBS, Rede TV! etc. Pode-se traçar uma escala que vai da maior competência e da melhor prestação de serviços à maior incompetência e aos maiores desserviços. Isso não será feito aqui. Basta dizer, a esse respeito, que a busca de audiência é frequentemente feita em detrimento da, chamemo-la assim, qualidade cultural, e, muitas vezes, a qualquer preço, na base do puro sensacionalismo e do escracho.

Educação e democracia

O que seria, então, a ‘democratização das comunicações’? No contexto acima examinado, tem cheiro de disputa ideológica e tentativa de hegemonia política. Por isso não vai colar.

E o pior é que a mídia mais combativa, ou mais engajada, ou com maiores pretensões de influir politicamente, continuará metendo o bedelho pesadamente no teatro político porque a oposição continua tão atônita quanto estava quando ainda nem sabia quem seria o candidato que iria enfrentar a indicada por Lula. Alguém tem que ser oposição para podermos bater no peito e nos orgulharmos de viver numa democracia.

Bem, e como ficamos em matéria de democratização, sem dúvida necessária em todas as esferas da vida social de um país que passou mais de vinte anos sob ditadura, para falar apenas do último meio século? De um país que ainda é campeão de desigualdades?

O primeiro e mais importante passo será dar oportunidades iguais para uma educação de qualidade. Passo indispensável, mas incapaz de garantir por si só que o país se mantenha nos trilhos da democracia. Basta pensar na Argentina, que Sarmiento alfabetizou na época da Guerra do Paraguai, ou no fato de que a Alemanha, como anotou Sérgio Buarque de Holanda, era o país mais instruído do mundo quando Hitler tomou o poder.

Mudanças já começaram

A agitação da bandeira ‘democratização da comunicação’ não produz o efeito supostamente desejado. Só aumenta a confusão. E, na confusão, como sempre acontece, levam a melhor os mais fortes, ou os mais espertos, ou ambas as coisas.

Na Folha de 21/11, Melchiades Filho escreve, lucidamente:

‘Mas há mais uma razão para Dilma, a despeito do discurso beligerante do PT, não gastar tempo e energia contra a radiodifusão e a grande imprensa: a ofensiva, silenciosa, já foi feita, sob amparo da tendência de mercado.

Neste ano, o governo Lula:

** acionou os fundos de pensão estatais e chancelou o acordo que passará a portugueses a `supertele nacional´;

** decidiu abrir às teles o mercado da TV a cabo;

** lançou um plano nacional da banda larga nas mãos de uma estatal com R$ 15 bilhões para escolher quem contratar;

** fechou os olhos à entrada dissimulada de capital estrangeiro na imprensa/internet;

** ampliou a publicidade em órgãos menos independentes. Coordenadas ou não, essas medidas alteram a correlação de forças na iniciativa privada ‒ ampliam a margem de ação de múltis telefônicas e/ou têm potencial para enfraquecer algumas empresas nacionais. As teles investem por ano no Brasil R$ 20 bilhões ‒ oito vezes o patrimônio total do Grupo Silvio Santos.

A aposta no Planalto é que vários empresários brasileiros terão de pedir água e, em troca de barreiras protecionistas, aceitar, senão pedir, mudanças na lei das telecomunicações ‒ ideia que hoje rejeitam. Caberia a Dilma, nesse cenário, arbitrar não apenas a nova conjuntura de mercado, mas também o debate sobre o `papel´ da imprensa.’

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Jornalista