Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A hora e a vez do bullying

A palavra inglesa bullying está na ordem do dia, principalmente depois do massacre da Escola Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, nos subúrbios do Rio.


Bullying procede do adjetivo bully, que originalmente não designou coisa ruim. Em Shakespeare, seu sentido positivo aparece em bully Bottom, bully Doctor etc. Mas, com o tempo, bully fellow, bom companheiro, misturando-se ao amante da esposa do amigo, mudou de significado. E então vieram a predominar outros significados: fanfarrão, ameaçador, intimidador etc. Uma das peculiaridades dessas ameaças é a circunstância de algozes e vítimas habitarem o mesmo espaço social e às vezes geográfico, quando não o próprio lar.


Quando ainda tinha significado positivo, o presidente americano Theodore Roosevelt, que assumiu a presidência porque o titular, William McKinley, foi assassinado, tornou célebre a frase de que a Casa Branca era um bully pulpit, isto é, tinha prestígio e poder, dali poderiam ser dadas ordens que mudavam a sociedade.


O dicionário Aulete Digital, que atualiza os verbetes na internet, antes de informar que ‘a prática de bullying é comum em ambiente escolar, entre alunos, e caracteriza-se por atitudes discriminatórias, uso de apelidos pejorativos, agressões físicas etc’, fixa-se na designação do que é bullying: ‘Toda forma de agressão, intencional e repetida, sem motivo aparente, em que se faz uso do poder ou força para intimidar ou perseguir alguém, que pode ficar traumatizado, com baixa autoestima ou problemas de relacionamento’.


Busca da celebridade


Boa parte da mídia informou ao distinto público, quase absolvendo o criminoso, que o pavoroso massacre de Realengo teria sido causado por bullying sofrido pelo assassino, que tinha estudado na mesma escola onde, muitos anos depois, estudavam suas vítimas.


Entre a enxurrada de textos sobre a tragédia, há um que merece especial atenção pela originalidade da abordagem. É ‘O culpado é ele mesmo’, de João Ubaldo Ribeiro, publicado no domingo nos jornais O Globo e Estado de S.Paulo. O escritor baiano, membro da Academia Brasileira de Letras, fixa o óbvio diante das absolvições que a mídia deu e continua a dar ao criminoso feroz que executou mais de uma dezena de crianças à queima-roupa, sem nenhuma chance de defesa para as vítimas, sequer a de fuga.


Com efeito, na mídia predominou o tratamento de coitado, desajustado, doente, marginalizado, incompreendido etc, quase como se fosse mais vítima do que os escolares que ele executou friamente ou, no mínimo, tão vítima quanto elas. Ora, restauremos o óbvio: quem matou foi ele e quem morreu foram as crianças. Ele também morreu, mas por livre escolha, com as próprias mãos, depois de assassinar alunas e alunos que, ao contrário dele, não queriam morrer, queriam viver e tinham seus projetos de vida, seus sonhos. Ele só não matou outras dezenas porque foi impedido pela polícia.


Escreveu João Ubaldo:




‘Desprezados, ofendidos, marginalizados, humilhados, ignorados, esses assassinos sabem, porque se espelham em precedentes, que, depois de sua morte, serão finalmente vistos e comentados e sua foto será estampada por jornais, revistas e cadeias de televisão. Como vários deles, inclusive o do Rio, referem-se ou são ligados a alguma crença religiosa, é possível que acreditem na imortalidade da alma e tenham certeza de que, despidos do seu invólucro corporal, virão a assistir à sua transformação em celebridades’.


Conto antigo


A questão é evidentemente polêmica e nos deixa a todos estupefatos porque a impressão passada pela mídia ao público é que o assassino, depois de morto, continua com o poder de manobrar a mídia que, submissa, fez e faz exatamente o que ele esperou: torná-lo celebridade, embora falsa e efêmera celebridade, pois lamentavelmente outro criminoso vai tentar superá-lo.


Entre as falsas celebridades, há muita gente que troca valores essenciais da existência para serem o que são, isto é, nada, porque, cessado o que têm a oferecer, desaparecem rapidamente para dar lugar a outras nesse Moloc que é o engenho aterrorizante em cujas engrenagens se enredaram. E se comportam como se fossem tão ou mais importantes do que as verdadeiras celebridades que se destacaram na medicina, na literatura, no jornalismo, na política, no esporte, nas artes, enfim nos mais variados campos da atividade humana, lutando por um mundo melhor, dando bons exemplos à sociedade.


Pergunta João Ubaldo:




‘A filosofia do nosso sistema penal é a recuperação do criminoso, mas tem gente que é ruim irrecuperavelmente e quem quiser pode chamar isso de doença. Que diferença faz, notadamente para as vítimas?’.


E conclui:




‘Costumamos citar países nórdicos como exemplo para nós. Lembro agora que, na Alemanha, pelo menos até o tempo em que morei em Berlim, certos condenados cumpriam suas penas integralmente, mas, ainda assim, não eram libertados. Acreditando que continuariam perigosos, se voltassem a circular, o juiz podia decretar que permaneceriam na cadeia, ou mais ou menos na cadeia. Aqui eles são logo soltos, até porque a culpa não é deles, é da sociedade. Deve ser por isso que a gente mora atrás de grades’.


Mas, a contrário do pai que não sabia o que era plebiscito e disse que era mais um estrangeirismo, no conto de Arthur Azevedo, bullying infelizmente não é apenas mais um estrangeirismo.

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Escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor e pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)