Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Obama, o homem que matou o facínora

Confesso que gostaria de começar o texto de hoje com umas frases do ministro Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, ditas durante o julgamento da união estável entre os homossexuais.


O trechinho já é um clássico, embora a mídia, sempre em busca da síntese, tão evitada no jargão jurídico, tenha enchido a citação de reticências, algumas delas naturalmente entre parênteses, indicando que havia mais pérolas ali, pois os jornalistas são profissionais que adoram meter a mão em todas as cumbucas e de muitas delas não entendem nada.


Não fosse isso, os leitores ficariam sem que o ler. Os jornalistas, diante do que não entendem, devem saber procurar aqueles que sabem. E estes têm outro ritmo, outros prazos. Enquanto isso, o editor quer a matéria para dali a algumas horas porque o leitor a quer no dia seguinte, redigida, revisada, diagramada e impressa.


Disse o ministro: ‘Afinal, a sexualidade, no seu notório transitar do prazer puramente físico para os colmos olímpicos da extasia amorosa, se põe como um plus ou superávit de vida. Não enquanto um minus ou déficit existencial. Corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou estorvo, menos ainda a uma reprimenda dos deuses em estado de fúria ou de alucinada retaliação perante o gênero humano’.


Cabras-machos


Na mesma semana em que ele dizia isso, para consagrar na lei a união homoafetiva, variante para união civil entre pessoas do mesmo sexo, defendida outrora na Câmara por deputados federais tão opostos quanto Marta Suplicy e Roberto Jefferson, Obama e Osama, dois cabras-machos, se enfrentavam no Velho Oeste dos EUA, cuja fronteira já chegou ao Afeganistão.


O assunto que ainda tomava conta do mundo no dia mães foi a morte de Osama Bin Laden, ainda cercada de controvérsias, pois há várias versões na internet, uma vez que, ao contrário do que ocorria antes dela, quando o mundo inteiro dependia de poucas agências de notícias, hoje o furo da notícia pode ser dado por um internauta a partir de um celular.


Tanto é assim que, sem querer, um internauta postou no twiter uma notinha dizendo que um helicóptero tinha pousado ali nas redondezas onde ele tuitava e que isso era um fato raro. Por pouco não transmitiu ao vivo a operação que devia ser secreta.


Popularidade


Algumas curiosidades cercam o tema. Osama, a caça que já era um mito, será mais mitificado ainda. E, com a troca de uma letra apenas, reforçou-se outro mito, o de Obama, o caçador, que vence onde todos os antecessores fracassaram.


A vitória do presidente dos EUA, que ex abrupto, como gostam de escrever muitos juristas, ou de repentemente, como dizia Odorico Paraguaçu, criatura imortal de Dias Gomes, levou às nuvens sua popularidade, foi assim designada por uma mulher americana de 63 anos, ouvida por um instituto de pesquisa: ‘It’s a macho thing’. (É coisa de macho).


Macho, do latim masculus, designando ser do sexo masculino, é contribuição latina à língua inglesa para substituir ou servir de variante a male, em oposição a female, próprio da mulher. Mas falamos por metáforas, e os dois gêneros clássicos, antes exclusivos, estão presentes até em parafusos, roscas, encaixes de madeira etc. Daqui a pouco os defensores radicais das expressões politicamente corretas haverão de prescrever substitutivos menos afrontosos.


Entre Obama e Osama, quais foram as tramas desta vez? Pois foram muito semelhantes ao conto Quem matou Liberty Valance (1949), da escritora americana Dorothy Marie Johnson (1905-1984) , que se tornou conhecido no mundo inteiro pelo filme de John Ford (1894-1973), O homem que matou o facínora, de 1962.


Não matarás?


E quem era o facínora? Ele se tornaria conhecido do mundo inteiro em 1998, aos 41 anos, quando foi identificado como o autor dos atentados contra as embaixadas dos EUA no Quênia e na Tanzânia. Nos dois massacres morreram 256 pessoas e 5.100 ficaram feridas. Em 11 de setembro de 2001, ele obraria seu feito mais retumbante, explodindo as Torres Gêmeas do World Trade Center, matando milhares de pessoas nos dois atentados e espalhando o pânico nos EUA e no mundo.


A morte de Osama Bin Laden foi comemorada por muitos daqueles que professam o mandamento ‘não matarás’. Os civilizados, religiosos ou não, acham que ele deveria ter sido levado a julgamento. Afinal, todos têm direito à defesa, por maiores que sejam os crimes a eles atribuídos.


Mas, neste caso específico, vale para o público o mesmo que valeu para a pequena localidade do Velho Oeste a execução de Liberty Valance. Voltando à cidade de Shinbone para o enterro de um velho amigo, o senador Ranse Stoddard decide contar a alguns jornalistas que não foi ele quem disparou o tiro que fez dele um homem célebre e o elegeu senador.


Stoddard revela, para surpresa de todos, que quem matara o fora da lei Liberty Valance tinha sido um homem desconhecido, que acabara de morrer.


Ao terminar o relato, Stoddard vê o editor do jornal local rasgar todas as anotações e pergunta o por quê desta reação. A resposta é direta: ‘Quando a lenda se torna fato, imprime-se a lenda.’


Uma das diferenças é que hoje, na internet, não se rasga nada; tudo se publica, editado ou não.

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Escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor e pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)