Monday, 09 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Jornalistas detonaram Bolsonaro

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil.

Não foram todos. Houve os que semeavam confusão em favor de Bolsonaro, participavam do gabinete do ódio e utilizavam as redes sociais para espalharem fake news. Faziam e fazem comentários mentirosos em jornais tendenciosos ou rádios bolsonaristas. Alguns deles tiveram de fugir para os EUA de onde enviavam e continuam enviando seu veneno.

Mas quando baixar a poeira, acabar a utilização da imprensa pelos advogados de Bolsomaro e de seu ajudante de ordens Cid, empenhados em semear a dúvida antes dos julgamentos, vai ser preciso contar ter havido heróis, responsáveis pela preservação da democracia. Felizmente estão vivos, não são heróis póstumos, e estão livres, não apodrecem em alguma cela do Doi-Codi.

Nos chamados Anos de Chumbo, essa ação viva da imprensa não era possível, a grande mídia era contida e censurada ou cuidava ela mesma dos cortes nos textos e na equipe de jornalistas.

Desta vez, a imprensa exerceu seu papel de vigilância e suas constantes revelações impediram a reedição de um golpe também com característica militar, vista a grande participação de militares fomentadores e conspiradores integrantes das Forças Armadas.

Porém, pode ocorrer que, no auge da euforia pela preservação da democracia com o desmascaramento e prisão dos golpistas, sejam esquecidos certos heróis. A maioria fotógrafos e redatores um tanto anônimos, que, no dia a dia das redações, foram travando uma a uma as tentativas conspiratórias. E a maior e a mais recente foi a do 8 de janeiro, devidamente documentada por fotos, relatos escritos, descrições pelo rádio e pela televisão, em reportagens ao vivo ou gravadas e transmitidas online.

Nesse episódio vergonhoso, já integrado na história contemporânea da nossa república, pode ser citado o fotógrafo free-lancer da agência inglesa Reuters, Adriano Machado, como representante dos demais, por ter sido alvo, na CPMI do 8 de janeiro, de denúncias absurdas e ofensivas por parte de parlamentares bolsonaristas.

Desde o fracasso da tentativa do 8 de janeiro para criar o caos e levar a um golpe, as lideranças golpistas criaram a “narrativa” inverossímil e inacreditável de terem sido petistas infiltrados os autores das depredações nos prédios da praça dos Três Poderes. Na busca de um bode expiatório, acharam o fotógrafo Adriano Machado, contra o qual Marco Feliciano, Magno Malta e outros despejaram seu ódio, com ofensas típicas da maneira como sempre se referem aos jornalistas da grande imprensa, imitando desaforos já proferidos por Bolsonaro, quando presidente, a jornalistas principalmente mulheres.

André Borges e Adriana Fernandes acabaram com o mito

Está próximo o fim do mito e da dinastia Jair Bolsonaro com seus zero herdeiros. O chamado caso das joias, um tanto menor e secundário em comparação com outras acusações de crimes arquivadas por Augusto Aras, acabou se transformando no motivo de uma provável prisão do ex-presidente já bastante anunciada.

Entretanto, tudo isso começou há cinco meses, dia 3 de março, numa reportagem da dupla de repórteres Adriana Fernandes e André Borges, com o título “Governo Bolsonaro tentou trazer ilegalmente colar e brincos de diamante num valor de R$ 16,5 mi para Michelle”. A localização dessas peças, retidas na alfândega do aeroporto de Guarulhos, permitiu localizar outras joias e isso acabou envolvendo Bolsonaro, seu ajudante de ordens Mauro Cid e o general pai de Mauro Cid, numa acusação de apropriação indébita com venda nos EUA, para não deixar rastros.

Recentemente declarado inelegível, por utilização de comprovante de vacina falsificado, o ex-presidente passa agora pelo vexame de ser considerado traficante de joias, mais o risco de ser preso. O sigilo bancário de suas contas bancárias e de sua esposa Michelle foi quebrado pelo STF e talvez seja também quebrado nos EUA pelo FBI.

O jornalista André Borges contou para o Canal MyNews que as investigações para a reportagem sobre as joias, feita com Adriana Fernandes, levaram dois meses e foram publicadas inicialmente pela Internet no site do jornal paulistano O Estado de S.Paulo, logo replicadas por toda imprensa brasileira. Tanto ele quanto Adriana não imaginavam que essa reportagem acabasse tendo a dimensão atual.

Depois de tudo levantado sobre as joias, conta André, ainda foram publicadas outras reportagens sobre o tema, envolvendo lances diversos como o tesouro escondido recebido da Arábia Saudita e a entrega das joias para Michelle Bolsonaro. As reportagens se referiam ao período em que Bolsonaro era ainda presidente, mas houve também movimentações das joias depois de terminado seu mandato presidencial.

Na entrevista ao MyNews, André Borges falou das fontes para a reportagem: são do “segundo escalão, funcionários de Estado, gente muito séria, alvos de muita pressão para liberar as joias apreendidas”.

Para André Borges, o furo dado pelo Estadão com sua colega Adriana Fernandes teve um preço: cerca de dois meses depois, foi demitido. Logo depois de sua demissão, o Observatório da Imprensa publicou matéria a respeito sob o título “Demissão de André Borges, economia ou censura?”, na qual se colocou também a denúncia feita pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo sobre a criação de um comitê para supervisionar conteúdo editorial.

Como não recebemos nenhuma explicação do Estadão sobre esse comitê, criado logo após a demissão de André Borges, ficam sem resposta algumas indagações ainda em aberto: a repercussão nacional da reportagem sobre o “caso das joias” foi mal acolhida pelos assinantes, anunciantes, provocou pressões sobre o jornal ou desagradou apenas sua direção?  Em todo caso, podemos pensar se tratar de uma estranha espécie de censura ou filtro, acima da chefia da redação.

André Borges é um jornalista já premiado pelo IREE (Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, nova entidade que, há três anos premia jornalistas) em 2020, com a reportagem sobre “Depósito Irregular da Petrobrás no Mar”. Faz parte da nova geração de jornalistas negros, trabalha com o Canal MyNews e afirma já ter encontrado bons substitutivos depois da perda do Estadão.

Diante do impacto nacional causado pelas reportagens da dupla Adriana Fernandes e André Borges, é certo que ambos, se vivessem nos EUA, ganhariam o prêmio Pulitzer de jornalismo.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.