Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O tsunami da inteligência artificial atinge o jornalismo

O pesquisador reflete sobre o impacto do uso da inteligência artificial (IA) na produção de notícias (Imagem: Banco Free)

O jornalismo ainda não assimilou completamente as consequências do início da era digital no exercício da profissão e a atividade é sacudida por um novo, e ainda maior, desafio com o avanço da inteligência artificial (IA) na produção de notícias. Apesar de até o momento não existirem fórmulas consensuais para conter o crescimento perturbador do desemprego e o esvaziamento das redações, os jornalistas começam a se dar conta de que a IA pode alterar radicalmente o núcleo central da profissão que é a produção de notícias.

O acúmulo de desafios, fruto do acelerado crescimento da inovação tecnológica, coloca o jornalismo diante da necessidade de uma reflexão profunda sobre o exercício de profissão. É indispensável que os profissionais do jornalismo percebam que estamos apenas na primeira fase da incorporação da inteligência artificial aos ecossistemas informativos nos quais todos nós estamos inseridos.

Do Quill ao GPT

A IA não é um fenômeno inédito e nem imprevisto. Em 2010, o projeto Narrative Science lançou o programa Quill cujos algoritmos monitoravam o movimento da bolsa de valores de Nova Iorque e produziam automaticamente relatórios textuais para orientação de investidores, publicados por empresas como o The Wall Street Journal e Fox News.

Treze anos depois de um início discreto, por conta de fortes reações no meio jornalístico, a inteligência artificial vira um tema badalado graças à operação de marketing deflagrada pelas chamadas Big Techs (Google, Facebook, Twitter, Apple e Microsoft). Além de exaltar as maravilhas da nova tecnologia, as megacorporações procuram ocupar espaços na mídia visando a comercialização de marcas, equipamentos e softwares. Este esforço de marketing é uma espécie de comportamento padrão entre as Big Techs no lançamento de novos produtos como já aconteceu com os computadores, tablets, smartphones e plataformas digitais.

A inteligência artificial pode alterar a prática do jornalismo de uma forma ainda mais profunda do que a gerada pela digitalização e a internet porque ela vai ocupar boa parte do espaço que as rotinas, regras e valores tem hoje no dia a dia da profissão. Entre as novidades possíveis está a automação do processo de garimpagem e edição de dados, fatos e eventos capazes de gerar notícias. Uma automação baseada em algoritmos (1) e em bancos de dados.

7,62 quatrilhões de gigabytes

Numa explicação bem simples, pode-se dizer que um algoritmo previamente programado varre os bancos de dados na internet seguindo instruções para buscar números, fatos e eventos arquivados digitalmente. No passo seguinte, o robô eletrônico seleciona o material solicitado, recombina o resultado e gera um texto baseado em programas de linguagem natural. É o que fazem o GPT e o Bard quando respondem a uma pergunta. Algo parecido, só que infinitamente mais simples, ao que o mecanismo de buscas Google executa quando alguém faz uma pesquisa.

A exatidão, confiabilidade e relevância dos resultados vai depender do volume de dados examinados e é aí que está a grande vantagem da inteligência artificial. O volume de dados disponíveis na internet tornou-se tão grande que já não é mais possível expressá-lo em números comuns. O site Statista, estima que, até dezembro próximo, será possível garimpar dados em 120 trilhões de gigabytes (2) arquivados na web aberta, que cresce a um ritmo de 26% anuais. A chamada web profunda, onde só algoritmos sofisticados conseguem entrar, há mais cerca de 7,5 quatrilhões de gigabytes guardados.

Os processos da inteligência artificial são usados por um número cada vez maior de empresas jornalísticas de todos os tamanhos. O conglomerado News Corporation, do multibilionário Rupert Murdoch distribui semanalmente três mil artigos produzidos por inteligência artificial para 75 jornais locais da Austrália. Tudo isto feito por apenas quatro jornalistas. Na Alemanha, o tabloide Bild, do grupo Axel Springer, o maior do país, já demitiu 200 profissionais substituídos por softwares de IA planejando automatizar pelo menos metade da redação até 2030.

Maria e Paul, uma amarga ironia

Nos Estados Unidos, acaba de ser lançado o projeto LocalLens, cujo ambicioso objetivo é produzir automaticamente notícias para cerca de 6.700 jornais locais e regionais no país. Ainda nos Estados Unidos, a newsletter do Nieman Lab revelou que estão sendo testados dois programas de inteligência artificial destinados a cobrir automaticamente sessões legislativas, julgamentos em tribunais e assembleias públicas. Os programas visam substituir repórteres e foram batizados, respectivamente de Maria e Paul, numa lamentável tentativa de humanizar um software gerador de desemprego.

Em Las Vegas, no estado norte-americano de Nevada, a câmara municipal passou a traduzir automaticamente para o espanhol os debates em plenário, acabando com o emprego de repórteres que trabalhavam para jornais hispânicos hiperlocais da cidade. O ritmo de substituição de humanos por softwares de inteligência artificial é tão intenso no jornalismo que a empresa de consultoria KPMG estima que 43% dos profissionais atualmente empregados engrossarão o desemprego na categoria ou mudarão de atividade até 2040.

Pelos indicadores atuais, a devastação provocada pela IA no jornalismo poderá ser até maior do que a gerada pela crise no modelo de negócios da imprensa, quando a internet provocou a migração massiva de anunciantes para páginas informativas na Web. Mas o avanço dos algoritmos na produção de notícias tem uma consequência ainda mais profunda no jornalismo. A automatização deve fazer com que a produção de notícias deixe de ser a principal atividade quotidiana de repórteres e editores para se tornar uma função restrita a projetos investigativos especiais.

A curadoria de notícias e a desinformação eleitoral

Diante da previsível intensificação da avalancha de informações produzidas automaticamente e do seu baixo custo, a preocupação principal passa a ser a confiabilidade, pertinência, relevância e a contextualização das notícias publicadas em plataformas digitais. E esta é uma função que só os jornalistas, como especialistas em informação de interesse público, podem executar. Mas isto exigirá novas habilidades e competências que inevitavelmente afetarão, especialmente, o trabalho dos repórteres.

O trabalho de campo em coberturas jornalísticas tende a diminuir devido ao aumento de material informativo bruto (hard news) publicado nas redes sociais por pessoas comuns, instituições e governos. Em compensação aumentará muito a exigência de cultura geral, reflexão crítica, capacidade de contextualizar números, estatísticas, fatos, eventos e ideias, bem como experiência na checagem de fatos e uma alta dose de credibilidade pessoal junto ao seu público-alvo. São competências e conhecimentos que tendem a transformar o jornalista numa espécie de “curador de notícias”.

Estamos diante de transformações na atividade jornalística cujo grau de complexidade aumenta na medida em que o avanço da inteligência artificial se torna cada vez mais rápido, com desdobramentos cruciais, especialmente no terreno político. Até o final de 2024 ocorrerão eleições gerais e parciais em 70 países, afetando a vida de quase dois bilhões de pessoas. É alta a probabilidade de que candidatos e partidos recorram à IA como instrumento eleitoral para fins de desinformação, segundo o professor e pesquisador norte-americano Bruce Schneier (3). É um cenário perturbador porque poucos países têm uma justiça eleitoral atuante, o que joga basicamente sobre o jornalismo a maior responsabilidade no combate à manipulação de informações, alimentada pela inteligência artificial.

Publicado originalmente em objETHOS

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Carlos Castilho é jornalista, doutor em Mídias do Conhecimento (UFSC) e pesquisador associado do objETHOS