Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Série britânica faz sucesso e gera debate sobre nova narrativa jornalística

(Foto: Divulgação ITV)

Uma série investigativa britânica acaba de mostrar que há sim saídas para o jornalismo em grandes empresas de comunicação, desde que elas abandonem o falido modelo de noticiário centrado na agenda da classe política.  A série Mr. Bates vs the Post Office  (O senhor Bates contra o Correio) produzida pela ITV (Independent Television, rede privada inglesa) desencavou um erro judiciário cometido há 25 anos e que só agora tocou o coração e mentes do público, graças a uma narrativa combinando jornalismo, drama e apoio a uma causa.

Ao longo de mais de duas décadas o trauma vivido por cerca de 550 empregados terceirizados do correio inglês foi objeto de reportagens de jornais, livro e notícias na TV, mas nunca o tema chegou ao grande público e muito menos gerou um clamor nacional pela correção do erro cometido por uma empresa japonesa de tecnologia, contratada pelo governo inglês da época para gerir as finanças da estatal Post Office. 

O software Horizon, desenvolvido pela empresa Fujitsu, apresentou um bug (defeito) que adulterava a contabilidade de centenas de pequenas empresas terceirizadas do correio inglês, apontando saldos negativos não confirmados pelas contas da maioria esmagadora dos franqueados. Como a Fujitsu garantia a correção do software e como os terceirizados não podiam provar que o erro era do programa, a justiça processou centenas de pequenos empresários, acusados de apropriação indébita de dinheiro público.

Os problemas do Horizon foram identificados bem mais tarde. Várias condenações foram revistas, mas o caso permaneceu sendo tratado como uma exceção até que a série em quatro episódios transmitida pela ITV em horário nobre na virada do ano gerou um clamor popular que obrigou o governo e a justiça a assumirem responsabilidades, coisa que nunca fizeram antes. Sempre se refugiaram na escassa repercussão popular de um erro judiciário escandaloso. 

A combinação de jornalismo investigativo, com emoções humanas e um formato narrativo em quatro episódios mostrou como é possível manter a atenção do público numa história complexa durante vários dias sem cair na mesmice das telenovelas ou no inevitável cansaço de um documentário longo.  

Um novo modelo narrativo

O drama de Alan Bates, o franqueado que não se conformou com a sua condenação e liderou a campanha contra o descaso do correio inglês, pôde ser contado com um mínimo de detalhes, o que o tornou um personagem quase familiar da maioria dos telespectadores da ITV. Nove outras histórias pessoais criaram a enorme empatia gerada pela série, cujos fãs passaram a cobrar insistentemente o desdobramento em novas temporadas, decisão que ainda não foi tomada pela emissora. 

O sucesso da série inglesa permite a abertura de um debate sobre o tipo de narrativa que a grande imprensa pode adotar no momento em que seu modelo tradicional de abordagem da realidade já não consegue mais segurar a audiência e leitores durante muito tempo. Na Inglaterra, este debate já começou conforme mostram várias reportagens do jornal The Guardian.

A avalanche informativa, o ritmo frenético da internet e o distanciamento da agenda dos grandes jornais em relação ao público agravaram a migração das pessoas, especialmente os mais jovens e as mulheres em direção às redes sociais, onde apesar dos graves problemas de desinformação e fake news, a maioria ainda se sente mais confortável por causa de dois fatores: as histórias são contadas mais informalmente do que o estilo jornalístico deliberadamente seco para procurar transmitir a ideia de objetividade; e a comunicação interpessoal ocorre no formato conversa informal.

A exaustão do estilo jornalístico baseado na chamada “pirâmide invertida” (1) abre uma oportunidade para que os veículos da grande imprensa inovem seus formatos de publicação de notícias, evitando a burocratização e padronização das narrativas. A perda de leitores e telespectadores é um dilema ainda sem solução para os grandes conglomerados da imprensa, que ainda não conseguem lidar tranquilamente com a convergência de plataformas de comunicação (texto, áudio, imagens e interatividade) na internet.

Esta combinação de plataformas, da qual a série Mr. Bates vs the Post Office é um exemplo bem-sucedido (há vários outros até mais sofisticados) é uma ferramenta comunicacional cuja complexidade técnica confere à grande imprensa condições únicas para sobreviver, reverter a queda de público e encontrar um novo nicho de produção de conteúdo noticioso. Mas os grandes conglomerados da comunicação precisam mudar sua relação com o jornalismo. É necessário abandonar a agenda noticiosa baseada na luta pelo poder entre grupos da elite política e econômica para focar na realidade das pessoas. 

Isto implica assumir uma nova postura diante de questões como a polêmica objetividade noticiosa. Ela pode ter funcionado quando se tratava de noticiar conflitos de interesse entre grupos de elite e poderia ser pouco conveniente financeiramente tomar partido de um lado. Mas agora, quando a principal preocupação é reconquistar audiências e leitores, a velha objetividade simplesmente não funciona. A empatia do público está diretamente relacionada ao envolvimento de jornalistas e narradores com o tipo de causa tratada no material noticioso. 

A história contada nos quatro episódios da série sobre o escândalo do software Horizon se preocupou mais em tentar levar os espectadores a se sentirem parte do drama vivido por quem foi injustamente punido do que exibir uma fria objetividade narrativa.

Notas

[1] Pirâmide invertida é uma técnica de construção de notícias onde os aspectos mais importantes são publicados logo no começo, seguindo-se os itens menos relevantes. Este recurso foi desenvolvido na era do telégrafo quando não se tinha garantia de que um texto chegaria inteiro a seu destino. Se o mais importante fosse transmitido primeiro, a notícia não estaria perdida, caso houvesse interrupção na comunicação. 

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.