
(Foto: Jakub Zerdzicki/Pexels)
Em setembro, a Agência Pública lançou a série “A Mão Invisível das Big Techs”. O material é fruto de uma investigação colaborativa liderada pela Pública e pelo Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), em conjunto com outras 15 organizações jornalísticas de diferentes países. A série revela como grandes empresas de tecnologia atuam para ampliar seu poder e moldar as regras do ambiente digital a seu favor. São reportagens que escancaram práticas de lobby, articulações políticas e estratégias de influência que, em geral, podem passar despercebidas ou permanecer invisíveis aos públicos. Se você ainda não teve contato com essa investigação, recomendo fortemente a leitura.
O texto que apresento aqui foi influenciado por duas reportagens específicas da série: “‘Alugando o inimigo’: como o Google pagou milhões à imprensa para evitar a regulação” e “O manual das Big Techs para impedir leis de remuneração à imprensa”. De forma resumida, analisam como tais empresas – com especial foco para Google e Meta, mas não só elas – têm adotado estratégias sofisticadas e multifacetadas para mitigar, frear ou moldar a imposição de leis que obriguem o pagamento de direitos ou remuneração aos veículos de imprensa pelo uso de seus conteúdos, trata-se de um arsenal de estratégias que pode variar conforme o país e que busca neutralizar propostas legislativas que, em alguma medida, interferem nos interesses desses oligopólios tecnológicos.
Lidos em conjunto, os materiais deixam claro que não estamos diante de episódios isolados, mas de uma verdadeira arquitetura de poder, em que as plataformas se blindam de forma jurídica, política e econômica, ao mesmo tempo em que fragilizam a autonomia de veículos de imprensa. As revelações trazidas reforçam um debate já conhecido, oferecendo evidências consistentes de como as ações coordenada das big techs, em um primeiro momento, forçam veículos a negociarem sob condições bastante desfavoráveis e, mais gravemente, sufocam o próprio jornalismo.
Como se sabe, não é uma influência que nasceu da noite para o dia. Em artigo recente, Christofoletti destacou algumas formas que ela se manifesta: no controle da publicidade online, que reduz drasticamente a receita dos veículos; nos algoritmos que determinam o que aparece ou não para os usuários, muitas vezes privilegiando conteúdo viral em vez de informação de qualidade; na criação de dependência tecnológica que limita a autonomia editorial; e na consolidação de uma cultura de gratuidade, que esvazia a remuneração adequada da produção jornalística.
Essas pressões não são estáticas. Elas se transformam e ganham novas camadas à medida que as próprias plataformas desenvolvem soluções mais sofisticadas. Uma dessas, não exatamente inédita, mas que ganha peso a cada dia, é a inteligência artificial generativa.
Conteúdos em disputa
Nesse cenário em que grandes plataformas expandem ainda mais seus modos de atuação, chamo atenção para duas formas que o conteúdo jornalístico tem se tornado matéria-prima estratégica, que dialogam e se complementam. Primeiro, como insumo para o treinamento de modelos de linguagem de grande porte, que aprendem com cada reportagem produzida, muitas vezes sem autorização ou remuneração aos autores originais. E, segundo, como combustível para assistentes digitais e novas ferramentas de busca baseadas em IA, que oferecem sínteses diretamente ao usuário.
É como se os textos produzidos por jornalistas estivessem sendo digeridos por máquinas, enquanto quem o escreveu recebe pouco ou nada em troca. Em resposta ao primeiro cenário, veículos de imprensa têm entrado com ações judiciais contra empresas que treinam seus modelos de IA com conteúdos jornalísticos sem compensar profissionais ou as organizações. Desde 2024, pelo menos, redações no Canadá, Estados Unidos, França, Japão e Brasil abrem processos contra Google (criadora do Gemini), OpenAI (dona do ChatGPT), Microsoft (criadora do Copilot), e Perplexity, por exemplo.
Para tentar fugir dessas pressões, algumas dessas empresas de IA vêm fechando acordos com veículos internacionais para licenciar o uso dos seus conteúdos, criando possibilidades de remuneração em um cenário cada vez mais crítico para o setor. O Tow Center for Digital Journalism da Universidade de Columbia realizou um mapeamento dessas parcerias até fevereiro deste ano, em que destacou 97 acordos realizados.
Em texto publicado para o *desinformante, Matheus Soares faz alguns alertas para as limitações desses contratos. Ele destaca que esses pactos são concentrados em um número restrito de mídia, favorecendo grandes organizações, o que reforça a desigualdade no próprio mercado. Aponta ainda que os critérios de seleção dos veículos contemplados muitas vezes não são transparentes, e há uma clara priorização de conteúdos em inglês, marginalizando produções em outros idiomas. Além disso, destaca que os valores negociados são frequentemente impostos pelas empresas de IA, deixando jornais em posição desfavorável para definir ou reivindicar a justa remuneração por seus conteúdos.
Novas mudanças e a necessidade de respostas
No ano passado, o Google lançou o recurso AI Overviews – no Brasil, Visão Geral com IA –, que exibe resumos gerados por inteligência artificial já no topo das páginas de resultados de pesquisa. Em setembro deste ano, a empresa lançou o Modo IA para buscas em português, uma versão avançada do Visão Geral que aprofunda a busca por meio de perguntas complementares e capacidade de interagir com texto, imagem e som.
Esses resumos, ao fornecerem respostas diretas às consultas dos usuários, reduzem significativamente o clique aos links dos sites de notícias – que são, muitas vezes, fontes das sínteses –, é o que indica uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center em março de 2025. A análise, baseada em dados de navegação de 900 estadunidenses, indicou que, quando um resumo de IA estava presente, os usuários clicaram nos links que originaram o conteúdo em apenas 8% das visitas, contra 15% em páginas sem o resumo. Além disso, os links das próprias fontes citadas nos resumos raramente eram acessados, ocorrendo em apenas 1% das visitas.
A principal consequência é exatamente a queda expressiva no tráfego para páginas de notícias, o que afeta diretamente a receita de publicidade e assinaturas, pressionando operações e levando a cortes de pessoal ou revisões estratégicas de conteúdo, como destacou a BBC. Esse também é um tipo de recurso que provoca preocupações sobre direitos autorais, reacendendo novamente o debate sobre a remuneração justa de profissionais e veículos.
Preciso destacar ainda que os impactos não se limitam à economia da imprensa. O uso indiscriminado de conteúdos jornalísticos por essas tecnologias também afeta o ecossistema da informação. Menos visitas diretas, concentração de poder nas mãos das plataformas e algoritmos que definem relevância diminuem a diversidade, a pluralidade e a profundidade das informações que chegam ao público.
À medida que o cenário muda rapidamente, o jornalismo parece não ser capaz de dar respostas na mesma velocidade e, como a própria reportagem da Pública evidencia, a força econômica dessas grandes plataformas restringe ainda mais as possibilidades. Ainda assim, é necessário agir. Novos modelos de interação com os públicos, para não depender dos resultados de pesquisa, e pressões legais e de regulação sobre as plataformas continuam a ser extremamente importantes. Além disso, um ponto-chave consiste em mostrar continuamente a relevância de um jornalismo de qualidade, que vá além de informações rápidas e superficiais, com verificação e contexto. Entendo que não há soluções fáceis ou únicas, nem um único ator capaz de reverter sozinho o controle que as grandes empresas de tecnologia exercem. Mas estratégias combinadas, como as citadas acima, não podem parar de existir.
Publicado originalmente em objETHOS.
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Kalianny Bezerra é Doutoranda do PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS.
