Quinta-feira, 6 de novembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1363

O papel do jornalismo no ecossistema da desinformação

(Foto: Ricardo Stuckert/PR)

6 de outubro de 2025. O aguardado encontro entre o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e o dos Estados Unidos, Donald Trump, finalmente aconteceu na Malásia, durante a cúpula da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean). O objetivo do chefe de Estado brasileiro era distensionar a relação entre os dois países e chegar a um acordo, após sanções comerciais e políticas aplicadas pelo governo norte-americano.

Antes de começar a reunião, os dois líderes conversaram com jornalistas, acontecimento transmitido ao vivo por diversas emissoras de TV “All News”, que utilizaram o recurso da tradução simultânea para as falas de Trump. Quando perguntado por uma jornalista sobre a possibilidade de o ex-presidente Jair Bolsonaro ser pauta na reunião, Trump respondeu “isso não é da sua conta”, mas a CNN Brasil traduziu como “Bolsonaro não é da nossa conta“. Logo depois, a frase estava no GC do canal de TV: “Trump: Bolsonaro não é assunto da nossa conta”. Rapidamente, o print começou a circular nas redes sociais, especialmente no Twitter/X.

Diante da grande repercussão, a CNN Brasil fez uma retificação também ao vivo (veja aos 02:13:09 do vídeo da transmissão). Um tanto errática, pois o apresentador gagueja e não é claro o suficiente, especialmente para quem não sabia do erro de tradução. Uma busca no Google mostra que o colunista Nelson de Sá publicou matéria com o título “Trump se reúne com Lula, e diz que Bolsonaro ‘não é da nossa conta’”, que foi posteriormente deletada e não está mais no ar.

A falta de uma retificação efetiva por parte da CNN Brasil, que deveria ter corrigido a informação nos mesmos canais por onde o erro circulou – incluindo a internet -, evidencia algo que eu e o professor Rogério Christofoletti discutimos neste artigo: a agência do jornalismo no complexo ecossistema de desinformação. Erros podem acontecer e são inerentes a qualquer atividade. Neste caso específico, o lapso de tradução poderia ter sido corrigido com uma ação responsável e transparente da CNN Brasil. O print com o erro deixaria de circular? Dificilmente. Mas retificar é ato de quem preza por sua credibilidade em longo prazo.

E por que menciono credibilidade? Porque este erro não-intencional, mas negligenciado por falta de correção efetiva, provocou uma onda de críticas da extrema direita à CNN Brasil. Por exemplo, o advogado Jeffrey Chiquini, que tem 1,8 milhões de seguidores no Instagram, afirma nesta postagem que “ela faz essa tradução ridícula, canalha. Essa é a imprensa brasileira”.

Deliberado ou não, o erro jornalístico acaba por contribuir com o ecossistema de desinformação e com o discurso de deslegitimação do próprio jornalismo, tão utilizado pelos radicais bolsonaristas. Embora a CNN tenha feito a retificação ao vivo, não se pode mais pensar no jornalismo praticado em qualquer mídia fora da convergência com o ambiente digital. Assim como não se deve tentar apagar o rastro do erro, como fez o UOL.

Jornalismo produz fake news?

No artigo citado anteriormente, argumentamos que há uma associação possível entre erro jornalístico e fake news, observável na prática profissional, em casos de ocorrência deliberada ou ainda quando protocolos mínimos de cuidado não são seguidos. O exemplo do erro de tradução da fala de Trump evidencia isso. A ponto de esta conta no Instagram utilizar expressamente o termo “fake news” ao criticar a CNN Brasil.

Por isso, defendemos que a associação entre jornalismo e desinformação não pode ser excluída das definições teórico-conceituais, sob pena de grave imprecisão ou incompletude na descrição do fenômeno. Ao pesquisar autores que conceituam fake news, percebemos que muitos reforçam seu caráter intencional, de espalhamento consciente e deliberado;  e distinguem a fake news do  processo jornalístico, enfatizando, inclusive, que a intencionalidade do conteúdo inclui a tentativa de ser percebido como uma peça jornalística.

Em nosso entendimento, ao invés de girar em torno apenas do “dever-ser”, uma adequada conceituação reflete as impermanências da prática, para que, então, o possível incômodo de incluir o jornalismo como um dos agentes de desinformação provoque mudanças efetivas na prática. Isso requer não apenas investimentos para a intensificação do rigor dos processos de apuração e difusão jornalísticas, mas também boa vontade corporativa para o reconhecimento de que a qualidade editorial traz embutido o compromisso ético de responder pelo que se publica.

A pesquisadora brasileira Marília Gehrke e Marcel Broersma, ambos professores na Universidade de Groningen (Dinamarca), também questionam a suposição de que o jornalista não desinforma. No congresso Future of Journalism, do qual participei em setembro deste ano em Cardiff (UK), eles analisaram quando isso acontece:

(1) quando o jornalismo reproduz falas falsas de fontes de maneira acrítica (o famoso jornalismo declaratório do “ele/ela disse”);

(2) quando a cobertura é errática e desinformativa, explorando clickbait e sensacionalismo por razões comerciais;

(3) quando cria um falso equilíbrio diante de temas contemporâneos (como a cobertura climática, por exemplo);

(4) quando trata problemas da sociedade como eventos episódicos (como feminicídios).

O erro jornalístico da CNN Brasil se encaixa no item 2 da argumentação dos pesquisadores, evidenciando que somente por meio de condutas éticas é possível distinguir jornalismo de fake news.

Publicado originalmente em objETHOS.

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Lívia de Souza Vieira é Professora da UFBA e pesquisadora associada do objETHOS