Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa, Bolsonaro e a denúncia da Comissão Arns

(Foto: Daniel_B_photos/ Pixabay)

Jean-Paul Sartre não está mais por aqui, mas ressoa até hoje seu comentário para chamar a atenção de um tribunal internacional, revoltado contra os crimes dos Estados Unidos na guerra do Vietnã: 

“Todo homem livre que se interessa por um problema social importante pode, com outros homens igualmente livres, fazer um julgamento que pode, por sua vez, levar outros homens a julgar como ele”.

Sartre manifestou-se em 1967 no Tribunal Russel. Foi há 55 anos, mas esta semana Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos, evocou o filósofo para lembrar que não poderia haver um momento melhor para  “um chamamento à consciência”.

Se tivermos sorte, este ato pode levar Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional de Haia: dependendo do veredito sobre as acusações de crimes e violações cometidos contra a humanidade, analisados nos dias 24 e 25 de maio, Bolsonaro poderá simbolicamente ser encaçapado como o tenente-coronel da Alemanha Nazista Adolf Eichmann foi na Argentina pelo Serviço Secreto de Israel em 1960. 

Parecia delírio impossível, mas Eichmann foi julgado e enforcado dois anos depois.

Não temos o Mossad, Bolsonaro repete que “só Deus me tira daqui” e o que a Comissão Arns pretende, junto com a Articulação dos Povo Indígenas do Brasil, a Coalisão Negra por Direitos e a Internacional de Serviços Públicos – leia-se SUS – é criar uma via paralela. Porque é gritante a ausência, a inércia e a impotência da Justiça formal para proteger as vítimas dos ataques pessoais ou dos troll centers montados neste governo. 

E as vítimas são muitas. A denúncia é de genocídio durante a pandemia contra os povos indígenas e a população negra—esses, os mais vulneráveis–, afetados pelo Covid-19. A Comissão colocou esta pauta com o tema “Pandemia e Autoritarismo” na 50ª Sessão do Tribunal Permanente dos Povos em Roma, presidido nesta semana pelo jurista Luigi Ferrajoli, que foi acompanhado on-line no salão nobre da Faculdade de Direito da USP.

Sartre dizia que a coisa mais difícil de gerir é a liberdade. Tem razão se considerarmos os últimos três anos de uma política de propagação de morte, autoritarismo, erosão da democracia institucional, descaso com a humanidade e todas as distorções decorrentes das ações de Bolsonaro, somadas ao vergonhoso silêncio do Procurador Geral da República.

E nós com isso? Nenhuma ação, nenhum inquérito que dê conta de reverter esse quadro, raros movimentos de rua, quase 200 pedidos de impeachment na gaveta de um Congresso dominado. Por quê? Ministérios distribuídos ao Centrão, um orçamento secreto cheio de benesses aos aliados, pastores se lambuzando nas verbas do MEC. Tudo isso num ambiente público bélico, onde Bolsonaro arma sua turma com decretos beneficiando colecionadores, caçadores, atiradores enquanto faz ameaças diárias de um golpe de estado.

A Comissão Arns não é o Mossad, mas se ergue junto com seus membros contra a omissão dos Estados brasileiros e a conduta criminosa do presidente que, como disse o advogado Antônio Cláudio Mariz, não apresenta nenhum amor pelo próximo.

“O presidente trata a sociedade civil como inimiga”, diz Paulo Sérgio Pinheiro: “a democracia do Brasil está na UTI”

“Precisamos criar uma opinião pública crítica indignada numa sociedade onde a elite letrada banaliza tudo, não reage diante da não demarcação das terras indígenas e quilombolas, diante da prática autoritária que julguei estar enterrada neste país junto com as lacraias de comportamento nocivo”, diz Wania Sant’Anna, ex-secretária de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, integrante da Coalisão Negra por Direitos, que clama por um confronto contra a barbárie.

No Brasil hoje estamos tratando de morte. A Amazônia está devastada. Entre os profissionais do SUS foram 1177 mortes em dois anos por uma filosofia de imunização de rebanho e cura pela cloroquina. Mais de 666 mil brasileiros morreram de Covid por despreparo, por asfixia em Manaus, por descaso e prepotência.

A Cinemateca Brasileira reabriu há duas semanas fixando no telão ao ar livre a morte de centenas de latas de filmes incendiadas pela indiferença do governo com a cultura. A Fundação Palmares, a Casa de Rui Barbosa, Ancine, os sistemas educacional e cultural em geral vivem num estado vegetativo post mortem. O brasileiro sofre de profunda depressão cívica e tudo conspira para a banalização do mal, como aconteceu na Alemanha de Hitler.

As eleições estão aí, o TSE convidou as Forças Armadas para integrar a Comissão de Transparência Eleitoral e puseram, como diz Paulo Sérgio Pinheiro, um cavalo de Tróia lá dentro. Enquanto isso, o perfil de Jair Bolsonaro tem visualização record de 630.600 com quase 6 milhões de seguidores. Sabemos que nem tudo o que o presidente diz é digno de ser noticiado, mas Bolsonaro apresenta tantas incongruências que fica difícil tirá-lo das páginas.  

Este é o país putrefato que a imprensa reflete e é chamada de louca por Bolsonaro. Laura Greenhalgh, jornalista e diretora executiva da Comissão Arns, explica que as notificações formais foram entregues ao governo para que enviasse representante ao Tribunal Permanente dos Povos. E diz que a Comissão pretende com esta ação criar uma opinião pública indignada. É improvável que Bolsonaro envie um assecla. Mas depois a louca será sempre a imprensa. Laura aguarda o veredito do TTP esta semana para, com chances, “podermos retornar ao nosso lugar”.   

O que a imprensa retrata é a realidade da ascensão do fascismo, um ditador que passa pelos braços do povo como aconteceu com Hitler e Mussolini. Mas a mesma imprensa apela para a ficção, quando compara este momento brasileiro ao de personagens tiranos nas peças de Shakespeare, como Ricardo III ou Macbeth, instalados num ambiente infestado de mentiras, teorias conspiratórias, inimigos imaginários e armas e violência rumo ao poder. Mas nem realidade nem ficção estão conseguindo sacudir os brasileiros e parte da imprensa digital da inércia. Estamos imobilizados pela impunidade dos agressores, a inflação, perda de status, fome e pobreza galopante. 

A fadiga conduz às fugas nos memes divertidos, séries nos aplicativos, joguinhos, escapes nas redes. Uma superficialidade que ajuda o estado psíquico e afasta as notícias tenebrosas, mas aliena. Quem combate leva chumbo cada vez mais grosso e liberado. O cordão de quem se junta aos jornalistas, educadores, filósofos, artistas cada vez aumenta mais. Como os humoristas que já sabem, “depois a louca sou eu”, como o português Ricardo Araújo Pereira assumiu esta semana na Folha de S. Paulo. E Ruy Castro, na mesma Folha este domingo, ao se vangloriar por uma catarata impedi-lo de abrir a televisão: “Bolsonaro ou um de seus asseclas pode aparecer na tela e eu me perguntar se vale a pena voltar a enxergar de novo “.

Ainda bem que existe a Comissão Arns para não nos deixar fugir. Segundo Paulo Sérgio Pinheiro, para manter aceso o exercício da vigilância.

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Norma Couri é jornalista.