Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O assédio eleitoral no Brasil de 2022

(Foto: cottonbro/ Pexels)

Uma das características marcantes da política durante o período da Primeira República (1889-1930) foi o coronelismo. Obviamente que em um país de dimensões continentais e marcado por fortes regionalismos, como o Brasil, cada localidade possuía dinâmicas políticas diversas, porém algumas questões eram observadas em praticamente todo o território nacional. Como afirma Pinto,

“[.. ] o coronelismo, guardadas as proporções generalizantes, tem uma constante quanto à manifestação de força de uma pessoa sobre outras, cujo poder está relacionado à posse da terra, ao exercício de cargos públicos ou  profissões de destaque e às relações entre a localidade e os governos  estaduais e o federal. (PINTO, 2017, p. 362)

Podemos considerar que é quase consenso na historiografia de que o coronelismo foi um fenômeno político assentado em relações econômicas e de poder. Por um lado, poderosos locais, conhecidos como coronéis, prestavam favores em troca do voto de pessoas que, de alguma forma, dependiam desses opressores, o que Queiroz (1975) chamou de “barganha eleitoral”. Por outro lado, esses coronéis utilizavam-se da hierarquia e da posição que ocupavam na sociedade para coagir os eleitores a votarem nos seus candidatos, dando origem ao chamado “voto do cabresto”. Embora estejamos abordando um fenômeno político que marcou a Primeira República, diversas reportagens veiculadas pela mídia revelam que muitos patrões estão utilizando a posição de empregador e o poder econômico para tentar manipular o voto de seus funcionários. Trata-se de uma demonstração de força assentada nas relações econômicas e de poder que empresários de extrema direita estão utilizando no processo eleitoral de 2022.

Segundo apurado por Leonardo Sakamoto, em texto publicado no UOL (outubro/2022), até o dia 21 de outubro o Ministério Público do Trabalho – MPT registrou 903 denúncias de assédio eleitoral praticado por patrões, envolvendo 750 empresas. Para efeito de comparação, em 2018 o MPT recebeu 212 denúncias, envolvendo 98 empresários, conforme apurado por Sakamoto. Os números mostram uma escalada assustadora da prática de assédio eleitoral no Brasil, o que pode ser reflexo do clima de vale-tudo instalado na corrida eleitoral. Além disso, os resultados das pesquisas ainda desfavoráveis ao atual presidente podem ajudar a explicar a radicalização na atuação destes empresários que defendem a pauta de precarização do trabalho representada por Bolsonaro e por seu ministro Paulo Guedes.

Diversas reportagens revelam três modus operandi principais entre estes empresários de extrema direita que agem como coronéis da Primeira República: a tentativa de compra de voto, a ameaça de demissão e a indicação de diminuição no orçamento investido junto a fornecedores. Ainda no primeiro turno, Roseli Vitória Martelli D’Agostini Lins, a empresária do agronegócio da região oeste da Bahia, gravou um vídeo, em redes sociais, orientando agricultores a demitirem seus funcionários que votarem em Lula. Outro vídeo compartilhado em redes sociais mostra Maurício Lopes Fernandes Júnior, empresário do nordeste do Pará, ameaçando fechar suas três cerâmicas em caso de vitória de Lula, além de prometer R $200,00 para cada funcionário, caso Bolsonaro seja eleito. Já no Rio Grande do Sul, a Stara, produtora de máquinas e implementos agrícolas, enviou um comunicado aos seus fornecedores afirmando que reduzirá seu orçamento em 30% em caso de vitória de Lula (PT) no segundo turno da eleição, conforme apurado pelo G1 (outubro/2022). O mesmo portal citado ainda revelou, no dia 19 de outubro, o caso de outro empresário do agronegócio que gravou um áudio coagindo suas funcionárias a votar em Bolsonaro. O bolsonarista chegou ao cúmulo de sugerir que suas colaboradoras colocassem o celular no sutiã para filmarem seus votos, comprovando voto no atual presidente. Segundo o áudio gravado pelo próprio empresário, ele demitiu duas funcionárias que se opuseram a gravar seus votos, prometendo a recontratação caso as mulheres mudem de ideia e provem o voto em Bolsonaro. Além disso, o homem ainda revela ameaça de boicote direcionada a donos de mercado de Formosa/BA, sugerindo que seus funcionários seriam proibidos de comprar nos estabelecimentos que não fossem comprometidos com o atual presidente. 

O assédio eleitoral divulgado por diferentes veículos de comunicação certamente traz diversos impactos negativos à saúde mental e ao bem-estar de trabalhadores e trabalhadoras brasileiras. Além disso, a prática constitui um verdadeiro atentado contra a democracia do país, pois visa tirar a liberdade de voto de milhares de cidadãos que são coagidos em seus ambientes de trabalho. É notório que muitos patrões estão apelando para práticas que nos remetem ao período do corononelismo no Brasil, reproduzindo características que marcaram a política durante a Primeira República, como: a tentativa de compra de votos e a prática da intimidação utilizando a relação hierárquica entre patrão e empregado. Porém, enquanto na Primeira República praticamente não havia mecanismos institucionais republicanos capazes de oferecer resistência às perversas práticas coronelistas e às recorrentes fraudes eleitorais, hoje a situação é diferente nesse aspecto. A garantia do voto secreto por meio do trabalho do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, que, por exemplo, proibiu o acesso à urna com celulares, assim como a atuação do MPT no combate ao assédio eleitoral, fornecem ferramentas de resistência aos trabalhadores e trabalhadoras na atualidade.

Não é à toa que as milícias digitais que atuam a favor do candidato da extrema direita orquestram uma verdadeira ofensiva contra as instituições da República, que passaram a ser hostilizadas por lideranças e militantes bolsonaristas. Atacar e deslegitimar o papel destas instituições é uma tentativa de impedir o funcionamento eficaz destes órgãos, abrindo caminho para a atuação perversa e covarde de patrões bolsonaristas que visam (re)implementar o voto do cabresto no Brasil. Neste cenário ameaçador ao Estado Democrático de Direito e à liberdade de voto de brasileiros e brasileiras é fundamental que a mídia cumpra seu papel investigativo e de denúncia contra tais práticas, além de divulgar os canais existentes para que os trabalhadores possam oferecer resistência contra estes crimes eleitorais que se proliferaram em todo o país [1]. Por fim, sindicatos e conselhos das mais diferentes categorias profissionais devem estar ao lado dos trabalhadores na luta contra o assédio eleitoral [2], impedindo manifestações de força dos patrões contra seus funcionários. 

Portanto, a despeito do desejo de centenas de patrões bolsonaristas que atuam como verdadeiros coronéis, a atuação do TSE, do MPT, da mídia e das associações de representação das categorias profissionais podem oferecer aos empregados ferramentas importantes para que todos os cidadãos possam resistir e manter a liberdade de escolher seu candidato, enterrando qualquer tentativa de retrocesso às práticas políticas que marcaram a Primeira República brasileira. Salvaguardar a liberdade de voto de todos os trabalhadores é defender a democracia brasileira, cada vez mais ameaçada pela atuação de radicais de extrema direita, que já demonstraram em muitas ocasiões seu incômodo com o Estado Democrático de Direito no Brasil.

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Notas:

[1]:As denúncias podem ser realizadas pelo site https://mpt.mp.br/

[2]: Centrais sindicais também criaram um formulário para que os trabalhadores possam denunciar o assédio eleitoral. Disponível em: https://assedioeleitoralecrime.com.br/

REFERÊNCIAS:

PINTO, L. F. C. Coronelismo: uma análise historiográfica. Locus: Revista de História[S. l.], v. 23, n. 2, 2021. DOI: 10.34019 / 2594-8296.2017. v23.20858. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20858. Acesso em: 24 out. 2022.

QUEIROZ, Maria. O coronelismo numa interpretação sociológica. In.: FAUSTO, Bóris. (Org.). História geral da civilização brasileira: estrutura de poder e economia. São Paulo: Difel, 1975, p. 156. v. 1. t. III.

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Diogo Comitre é professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo.