Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O falso clone do Marrocos

NOVELA ENGANOSA

Zélia Leal Adghirni (*)

A Rede Globo orgulha-se de exportar suas novelas, inclusive para o mundo árabe. E o mundo árabe são 22 Estados, cerca de 250 milhões de habitantes, divididos entre o Norte da África, o Golfo Pérsico e o Oriente Médio. Nem todos os países árabes são muçulmanos, como nem todos os muçulmanos são árabes. Irã, Turquia, Paquistão e Indonésia, que estão entre as maiores nações muçulmanas, não são países árabes. E milhares de palestinos, libaneses e sírios professam a fé cristã, apesar de serem árabes. Difícil entender estas diferenças em tempos de guerra, quando se confunde árabe com muçulmano, muçulmano com terrorista. Neste sentido, a novela O clone, de Glória Perez, não veio para esclarecer, mas para confundir.

Se todos concordam que novela é ficção, sabemos também que a novela funciona como paradigma de cultura no imaginário popular. Para pessoas menos informadas, na China e no Marrocos, por exemplo, a Escrava Isaura era uma personagem brasileira contemporânea. A confusão se instala quando a ficção e a realidade mesclam os tênues limites que as separam para construir uma imagem irreal do que é real. Neste sentido, O clone corresponde ao estereótipo da falsa cultura que se pretende real. Todos os ingredientes caricaturais do que há de mais retrógrado no Marrocos estão aí representados. É verdade que no mundo da arte, muitas vezes, o autor precisa optar por um determinado recorte da realidade, mas quando a escolha recai sobre um ângulo unidimensional que limita as várias leituras possíveis de um complexo universo cultural, o público sente falta da sutileza inteligente das nuances.

Assim como as marroquinas entrevistadas pelo Correio na semana passada não se reconhecem nos perfis das personagens femininas, eu também não identifico neste cenário as pessoais reais com que convivi durante os sete anos em que morei neste país. Não sou marroquina nem muçulmana, mas fui casada com um marroquino durante 17 anos e pude desfrutar da intimidade da vida familiar deste povo extremamente acolhedor.

Reajo porque sei do que estou falando. A novela se passa nos anos 80. Justamente morei entre 1983 e 1990 no Marrocos, onde exerci as funções de jornalista na imprensa marroquina de expressão francesa e de professora na Escola Superior de Jornalismo. Já nesta época, tanto minhas alunas como minhas colegas de trabalho tinham liberdade para escolher seus maridos, fazer carreira profissional e até pilotar aviões de linhas internacionais. Eu mesma entrevistei duas jovens de Casablanca que pilotavam aviões da Royal Air Maroc. Tinha amigas médicas, arquitetas, jornalistas, advogadas, professoras e donas de casa.

Virgindade e desinformação

Convivíamos com as diferenças que fazem a diversidade de uma cultura, e não nos chocava a preservação dos costumes em áreas rurais onde as famílias cultivavam o ritual de um casamento arranjado. Mas a moça sempre tinha o direito de recusar o noivo que não lhe agradava. E nas cidades grandes, como aqui, era impossível impedir que os namorados dessem suas "escapadas" para um convívio mais íntimo, sem que ninguém recebesse "80 chibatadas" por isso. Casar com um estrangeiro, para uma mulher, já era mais difícil. Mas não impossível. Bastava se converter ao Islã, o que muitos estrangeiros, franceses principalmente, sinceramente ou não, faziam de bom grado.

Portanto, um olhar mais atento à formação da sociedade árabe-muçulmana e seu comportamento atual teria ajudado a autora a evitar certos equívocos.

A geografia e a história do Marrocos permitiram que se beneficiasse de diversas influências culturais, abrindo-se sobre o mundo e a modernidade sem abandonar as tradições. Nas cidades ou no interior, as mulheres tanto podem usar o véu e a túnica tradicional (djelaba) como o jeans e a minissaia. Se algumas mulheres preferem adotar as roupas tradicionais sem jamais aderir à moda ocidental, outras passam do jeans ao kaftan (vestido tradicional de festas) sem nenhum complexo

O que mais choca na novela de Glória Perez é a visão distorcida do universo feminino. Desde quando um homem comanda a vida das mulheres no recinto familiar? Nem no belíssimo relato da socióloga e feminista marroquina Fátima Mernissi ? Sonhos de Transgressão ?, sobre a vida em um harém de Fès nos anos 40, os homens tinham este poder.

A ausência da figura da mãe, na trama, é também algo significativo. Talvez seja proposital, já que o título da novela indica que a vida pode ser criada artificialmente. A única mãe morre no primeiro capítulo. Nem os gêmeos brasileiros têm mãe. A maternidade é um desejo obsessivo de Deusa, que vai gerar um clone. Assistimos à vida cotidiana de uma família marroquina sem mãe nem esposa. Há apenas um tio polígamo (somente 0,03% dos marroquinos são casados com mais de uma mulher, segundo dados oficiais) que comanda com mão de ferro um universo feminino composto de uma doméstica e de duas sobrinhas sem pai nem mãe. Além disso, o tio Ali (Stênio Garcia) não é marroquino, é egípcio. Confuso, não? Estranhamente este tio, apesar da idade, não tem filhos adultos. Os noivos das meninas (Jade e Latifa) também são órfãos e vivem controlados por um tio. Conclui-se que a vida familiar marroquina é conduzida por tios.

Ora, quem viveu na intimidade marroquina sabe que quem exerce o poder dentro de casa é a mulher. Quem educa as filhas é a mãe. Jamais um homem perguntaria à moça se "seu sangue já veio". Muito menos entraria no quarto nupcial em comitiva para checar a virgindade da noiva pela mancha de sangue no lençol. Até porque ninguém é mais ingênuo a ponto de fazer tal exigência. Por cem dólares, qualquer cirurgião plástico de Casablanca refaz o hímen. A propósito, um dia destes, num programa da Hebe, mulheres falavam abertamente sobre a cirurgia a qual tinham se submetido para refazer a virgindade com o objetivo de dar mais prazer ao parceiro.

O Egito não caiu

A obsessão pela dança do ventre é outra característica da novela com explícitos fins de ibope. A prática está em alta. Até parece que estamos numa academia de dança no Brasil. As marroquinas não usam aqueles trajes de dançarinas egípcias. Turistas pagam para ver exibições de odaliscas em boates e hotéis de luxo.

Pelas imagens é difícil situar onde se passa a história. A câmera vai de Fès a Ouarzazate, passando por Marrakech, com algumas cenas em Tanger. Para quem conhece bem o Marrocos, a colagem inusitada chega a ser engraçada. Passa-se do pátio andaluz para as dunas do Saara em questão de segundos. Os namorados clandestinos marcam encontro nas ruínas que ficam em Ourzazate, a centenas de quilômetros de Marrakech. Mas se novela é ficção, a licença poética vale também para a composição dos cenários com fins estéticos. Sobretudo quando o diretor de fotografia é Jayme Monjardim. Aplausos para as belíssimas imagens captadas por sua câmera sensível.

A colagem de paisagens para efeitos de cenário não é um problema. O que é grave é o amálgama cultural e a confusão que a autora joga sobre o tempo. Ela mistura o Marrocos contemporâneo com um Marrocos pré-islâmico onde se vendiam mulheres e homens como escravos, prática proibida com o surgimento do profeta que também proibiu que se enterrassem vivas as meninas recém-nascidas e que se fizesse a ablação do clitóris. Cenas de mulheres árabes vendidas no souk ou de lindas loiras turistas trocadas por camelos (cena de Vera Fischer) são inverossímeis, mas continuam alimentando o imaginário popular.

Em tempos de crise, o Marrocos achou que lucraria projetando o país através das telas da Globo. Afinal, o turismo representa a segunda maior riqueza do país. Quem diz turismo diz também artesanato, outra fonte de divisas, junto com o fosfato, para o país. O que o Marrocos não esperava era ver-se retratado pela ótica do exotismo fácil. Mulheres enclausuradas, odaliscas, poligamia, camelos e touaregues são apenas alguns ingredientes que confirmam os esteréotipos construídos pela desinformação. Talvez por isso o Egito, onde, de acordo com o roteiro original, ia se passar uma parte da novela, tenha recusado à Globo o visto da filmagens.

(*) Jornalista e doutora em Comunicação; professora e pesquisadora da linha de Estudos de Jornalismo no programa de Pós Graduação da FAC /UnB