Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Que poder é esse?

Os que se interessam por uma comunicação democrática, ética e decente não podem ficar calados diante das arbitrariedades e prepotências de ao menos um (o maior) conglomerado da mídia com respeito a sua feroz campanha política, principalmente com referência aos presidenciáveis.

A campanha já está em pleno andamento. Só os ingênuos não se deram conta. A TV Globo já se antecipou, inteligentemente, em promover um debate antes do horário político. A importância das “entrevistas” é que no horário eleitoral quem coordena o programa são os partidos. Na propaganda da Globo, os senhores da Globo. Eles selecionam o tema a ser discutido, colocam a matéria conforme seus interesses – principalmente as “perguntas” – e delimitam o tempo que cada um pode falar. Além disso, os programas de TV aberta, como o Jornal Nacional, têm uma audiência certa, tradicional, costumeira, quase que uma audiência cativa. Ao passo que ao programa eleitoral assiste quem quer e, devido à propaganda negativa feita pela própria mídia, muitos telespectadores se abstêm.

Não vamos comentar aqui as notícias veiculadas pela “grande mídia” em seus noticiários cotidianos. Sobre isso é ilustrativo conferir o trabalho do “Manchetômetro”, organizado pelos estudiosos da UFRJ.

Os pressupostos da entrevista

Na análise da mídia, o primeiro cuidado consiste em identificar os pressupostos subjacentes aos programas. E o principal deles é o poder autoatribuído dos entrevistadores não apenas sobre os candidatos, mas sobre qualquer cidadão brasileiro. Eles são a “consciência ética” do Brasil. Eles conhecem tudo, sabem das coisas. William Bonner (certamente orientado por alguém) e sua ajudante de ordens, humilde e submissa, é o inquisidor-mor do espetáculo. O pressuposto é que eles conhecem tudo sobre o tema e mais: têm o direito de se colocar como juízes dos supostos candidatos.

Lembro-me de uma afirmação inteligente e arguta do sociólogo Herbert de Souza, o nosso querido Betinho. Ele dizia que só acreditava em democracia no Brasil quando o presidente da Rede Globo fosse escolhido por eleição direta. E estava coberto de razão, pois o que nossos grandes conglomerados televisivos possuem é um poder autoatribuído. Pela Constituição, eles não são “donos” dos meios eletrônicos, mas possuem uma concessão temporária (TVs 15 anos e emissoras de rádio 10) para cumprir uma tarefa específica. E essa tarefa está clara no artigo 211 da Constituição, onde estão os princípios que devem orientar a comunicação eletrônica. E o primeiro, é que deve ser educativa. E educar não é dar respostas, dizer como as coisas são e devem ser, mas fazer a pergunta, estabelecer o diálogo, fazer o povo pensar. Poderíamos perguntar: que poder é esse? Enquanto, sabemos, todo o poder vem do povo. Então, quem conferiu esse poder aos interrogadores da Globo?

Confiram agora o estilo dos inquisidores. Eles se comportam como se fossem donos do meio, senhores da situação. As “perguntas” são declarações peremptórias de como as coisas aconteceram, concluindo com um ponto final: assim foi o fato. E então a pergunta: diante disso (que nós dissemos como foi, ou é, e que é indiscutível), o que você tem a dizer?

As armadilhas preparadas

É ilustrativo fazer uma análise crítica de algumas estratégias empregadas pelos locutores para conseguir seus intentos não revelados. Duas mais interessantes:

1. Bonner traz à baila o “mensalão” dizendo que o partido de Dilma Rousseff tinha pessoas “comprovadamente corruptas”, condenadas pela “mais alta corte do Judiciário”. Afirma que o partido tratou esses condenados como guerreiros, vítimas da injustiça. E pergunta se isso não é ser condescendente com a corrupção.

A armadilha estava pronta: se dissesse “sim”, ela estaria condenando seus companheiros. Se dissesse “não”, estaria se colocando contra o Supremo. Imaginem as manchetes do dia seguinte, capitaneadas pela Globo. Surpreendentemente, a candidata vai direto ao ponto, desarmando a arapuca. Dá até a impressão de que a presidenta está fugindo do tema. Mas não. Ela quer desmascarar a arapuca. Bonner insiste e Dilma não se submete, apesar das mais de 10 interrupções de Bonner. Então entra a parceira: “Presidente, corrupção não é o único problema, há também o da saúde…”, ao menos para dizer que há corrupção.

2. Outra arapuca foi a tentativa de colocar Dilma contra os partidos. Bonner cita todos os ministérios em que ministros de partidos que fazem parte do governo deixaram o cargo, para dizer que Dilma se cercou de pessoas corruptas. Quando mudava um ministro, colocava outro do mesmo partido, “trocava seis por meia dúzia”. A intenção era de indispor a presidenta com os partidos. O pressuposto, tácito, era de que Dilma e corrupção andam juntas.

O clima criado e alimentado pela Globo não é de quem quer mesmo um debate sério, honesto, respeitoso. Tudo bem que se questionem os candidatos de maneira incisiva e crítica. Mas não são necessárias agressões e dedos em riste. Os apresentadores se mostram como arautos da ética e da honestidade, com uma postura de arrogância e prepotência inquisitoriais, salvadores da humanidade.

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Pedrinho Guareschi é professor e pesquisador do Programa de Psicologia Social e Institucional da UFRGS, autor de diversos livros, entre eles O Direito Humano à Comunicação – Pela Democratização da Mídia (Editora Vozes, 2013)