Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Voo cego com o Duque e o general

Quando surgiu, na década de 80, o Bom Dia, Brasil era todo produzido em Brasília. Monforte era o apresentador. Eu, repórter, dividindo a bancada com o Monforte nas entrevistas, principalmente as políticas, e tomando o famoso ‘café da manhã’ na casa de alguns entrevistados, quadro que um dia mereceu gozação do Jô Soares, que apareceu nos imitando, comendo como um doido e dizendo ao entrevistado apenas: ‘Prossiga, prossiga!’

Um dia, logo ao chegar à redação às cinco da matina, ainda no escuro, recebemos a informação de que o todo-poderoso general Golbery do Couto e Silva, chefe do Gabinete Civil da Presidência e eminência parda do regime, tinha sido internado no Hospital das Forças Armadas. Imediatamente, eu e uma equipe de transmissão ao vivo fomos enviados para lá. Trabalho fácil, claro: uma entradinha ao vivo dando um boletim sobre o estado de saúde do general e tamos conversados.

Sem falhas, sem gaguejos

Monforte estava de férias e o programa estava sendo apresentado pelo colega Álvaro Pereira. Ao chegar, percebi que a ‘entradinha’ ia ser complicada. O esquema de segurança era tão forte que não se sabia nada além do fato de que Golbery estava internado. A muito custo consegui a hora exata em que ele havia chegado e outros detalhes bobos, mas fundamentais num sufoco daqueles. Lembrei dos problemas de descolamento de retina que Golbery vinha sofrendo. Falei da idade dele, essas coisas. Empacotei esses fiapos de informação num boletim improvisado e me preparei para entrar no ar. Mas surgiu um ‘pequeno’ problema: tínhamos perdido a comunicação com a redação. Não sabíamos se nosso sinal estava ou não sendo recebido lá. Na dúvida, e confiando na experiência de Ronaldo Duque, um dos melhores produtores com quem trabalhei (diretor de Araguaya, a Conspiração do Silêncio), resolvi fazer o boletim mesmo assim, confiando que, na redação, se estivessem recebendo o sinal, gravassem e pusessem no ar depois. ‘Alô, Duque, alô redação, não sei se estão recebendo nosso sinal, por isso daqui a alguns minutos vou contar de um a dez, bem devagar, e fazer o boletim. Gravem aí e coloquem no ar quando der.’

E assim foi feito. Gravei o boletim enquanto os técnicos tentavam, sem sucesso, restabelecer nosso contato. Alma leve, missão cumprida, fomos embora. Quando chegamos à redação, estava todo mundo com o olho destamanho. O louco do Duque, em vez de gravar, havia me colocado no ar… ao vivo, em rede nacional! Avisou o Álvaro que eu entraria a qualquer momento, esperou minha contagem, deu o famoso ‘vai’ no ponto eletrônico e o Álvaro me chamou: ‘E agora, ao vivo, o repórter Paulo José Cunha dá as últimas informações sobre o estado de saúde do general Golbery do Couto e Silva, internado esta madrugada no Hospital das Forças Armadas.’ Entrada perfeita, sem falhas, sem gaguejos, com assinatura no final e tudo.

Confiança e cumplicidade

O detalhe foi o risco que corri. Imagina se, pensando que estivesse sendo gravado, eu dissesse um palavrão bem cabeludo no ar? Só não aconteceu porque não disse palavrão algum. Nem diria, por conta de um detalhe essencial para quem trabalha em televisão: eu confiava e confio do taco do Duque e o Duque confia em mim. Ele sabia que, diante de um microfone, eu, que sou um brincalhão, fico sério como um guarda da rainha. Dessa confiança surgiu a cumplicidade e a amizade que se mantém até hoje, embora nos vejamos tão pouco. E sem cumplicidade e confiança dentro da equipe é impossível fazer boa televisão. Porque televisão é sinônimo de equipe, de confiança, de cumplicidade. O velho e querido Duque taí mesmo, para não me deixar mentir.

Mas agora, que não estou na frente de um microfone, deixa eu confessar uma coisa: um dia eu ainda mato aquele fia da mãe. Ele que me aguarde.

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Jornalista, professor e poeta