Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A enciclopédia sem limites

Após uma sucessão de desconfortáveis polêmicas com a Igreja Católica sobre a moral e a liberdade, o francês Denis Diderot inicia em 1747 um projeto pouco modesto. O objetivo, “mudar o modo como as pessoas pensam”. Com a frase, Diderot (morto em 1784, aos 71 anos) explicava a “Enciclopédia” e sua missão de reunir o conhecimento para as futuras gerações e para todos. Ao menos todos que soubessem ler. Foi um instante decisivo para a história da organização moderna do saber. 2012 pode ter sido o começo de seu fim.

Se esse período que termina em dezembro for lembrado exclusivamente pela paranoia apocalíptica, o ano guarda ao menos um real e potente signo sobre a mudança do tempo, da história e do comportamento. Depois de 244 anos, a “Enciclopédia Britânica” anunciou em 2012 ter descontinuado sua publicação em papel.

A enciclopédia (o espaço no qual o saber está reunido) é agora fluida, imaterial. E mesmo seu projeto (ou sonho) iluminista se move em uma atmosfera na qual o conhecimento está submerso em um oceano de imagens, sons, testemunhos e documentos oferecidos de todas as formas, mas desacompanhado de hierarquia. A era dos dispositivos digitais pode não estar alterando o modo como as pessoas pensam, mas certamente tem modificado a experiência de estar vivo.

Desde o início do século, uma série de ideias tem procurado dar conta do que o milênio pode estar gestando com a (cada vez mais) alta tecnologia. O crítico francês Nicolas Bourriaud, no livro “Pós-Produção”, apresentou em 2002 sua ideia sobre o surgimento da “cultura DJ”: você pode tomar, misturar e usar um pouco de tudo o que já existe e, assim, criar algo jovem a partir do velho.

Já o filósofo alemão Boris Groys, no ensaio “Comrades of Time” (Camaradas do tempo, 2009), anunciava que “hoje estamos atolados no presente, que reproduz a si mesmo sem levar a futuro algum”, enquanto o britânico Simon Reynolds declarava em seu livro “Retromania” (2011) estar a humanidade presa na repetição do passado. Neste ano, quem tem dado a palavra final sobre o assunto é o cantor coreano Psy e seu “gangnam style”.

Arquivo móvel

O sentido da enciclopédia foi organizar o conhecimento enquanto criava um sistema capaz de disseminá-lo – um empreendimento, também, econômico. Mas Diderot desconfiava do otimismo com o progresso, que pode não conduzir necessariamente a um Estado ideal. Esse é o ponto que permeia o pensamento de Bourriaud, Groys e Reynolds em seus tons mais ou menos pessimistas. Todos apontam o excesso e as consequências de existir em meio a um acúmulo geral de qualquer coisa.

A enciclopédia se mostra neste instante literalmente infinita e presente em toda parte. Porque contém tudo. É tudo. Está disponível no YouTube e no celular, no lar ou no trabalho, na intimidade e no campo social. Oferece o passado e o presente, mas não o mecanismo estrutural que a tornou revolucionária no século XVIII: a enciclopédia não possui mais ordem ou contexto, ensina a música pop coreana.

O “gangnam style” se tornou a trilha involuntária do ano e ainda um desses fenômenos capazes de materializar a pulsação do novo século, com sua mistura de entretenimento, tecnologia, arte, potencial político e bobagem descartável. Em meses, e com extrema velocidade, o “gangnam” passou de mania a ferramenta de uso universal, com o vídeo musical de Psy sendo parodiado a fim de emitir as mais diferentes mensagens.

Em montagens, as imagens dos candidatos nas eleições presidenciais americanas, Barack Obama e Mitt Romney, foram reproduzidas ao lado de Psy; o mesmo para Lula e Dilma; a coreografia passou a ser imitada nos mais inesperados lugares, entre eles a sede da ONU, em Nova York, com o secretário-geral Ban Ki-moon ensaiando alguns passos.

Mas o melhor surgiu em outubro, quando o artista e dissidente chinês Ai Weiwei apresentou sua versão, dançando com algemas – um comentário sobre a situação das liberdades políticas em seu país. Após o caso, Weiwei teve seus contatos com o Ocidente cortados. O que levou outro artista, o britânico (de origem indiana) Anish Kapoor, a produzir seu “gangnam style” repleto de palavras de ordem contra governantes chineses. Em seguida, o ato passou a ser reproduzido em vídeos com funcionários de diferentes museus pelo planeta dançando no estilo Kapoor.

Essa é a realidade na enciclopédia (biblioteca, arquivo vivo, centro de dados) instantânea, sem hierarquias que definam o que é necessário conhecer. Um produto pop vindo da Coreia pode se tornar uma plataforma universal de protesto, alcançando bilhões e se tornando uma potencial ferramenta no jogo de propaganda. A enciclopédia absorve e devolve o fato, mas com outro sentido.

Assim, tudo está disponível e tudo pode ganhar um novo significado; “gangnam style” é apenas o exemplo extremo sobre os modos de atuação com e na enciclopédia; e 2012 tem sido rico em fenômenos semelhantes, aptos a traduzir ou evidenciar a ansiedade com o tempo, adicionando ou subtraindo valores. O calendário maia que o diga.

Mas o que Diderot e seu parceiro na “Encyclopédie”, Jean le Rond d'Alembert, sabiam é que a informação não caminha necessariamente ao lado do conhecimento. No arquivo móvel da humanidade, agora reproduzido e consumido com avidez, esse parece ser o grande paradoxo: há informação sobre tudo (e quase todos), mas o que há de conhecimento real em tudo o que se pode acessar?

Preço a pagar

Os excitantes intelectuais da Eslovênia (como Slavoj Zizek, Renata Salecl e Igor Zabel) têm procurado demonstrar que a imensa possibilidade de escolhas resulta no aumento dos índices de depressão e ansiedade na sociedade. Diante da avalanche de informação, há a constante sensação de desperdício do tempo, pois sempre existe algo mais a ser conhecido enquanto os segundos passam de forma acelerada. Saber qual informação escolher (e de que maneira se relacionar com a escolha) se torna um valor, um procedimento e uma operação intelectual que não permite descansos, porque determina onde está a atenção de cada um. E, se não há mais tempo e condição para tanto, torna-se possível delegar essa função a outra pessoa ou sistema.

Essa atmosfera cultural pode ajudar a entender (um exemplo) o surgimento da curadoria no lugar de elemento-chave para a organização de conteúdo. Há curadores de humor na internet, de melhores presentes, seminários, adegas, em desfiles de moda, organizando coleções de bonecas e até editando livros. Há uma inflação do termo, que esconde as questões políticas envolvidas na triagem.

Surgida (como praticada hoje) na história da arte em 1969, a “curadoria” dava conta de uma função antes não prevista no ambiente do museu – com seu papel predominante de seleção e de preservação da cultura. A curadoria aparece depois dos movimentos de 1968, que promoviam o embate com o status quo social e político. Uma nova geração de artistas se opunha então às regras do mercado de arte e de suas instituições, da sociedade e suas ambições, e a curadoria se tornava a articuladora desses discursos. Logo, mais do que uma escolha, a curadoria exigia uma posição política.

Agora, a urgência diante do excesso de tudo é o que tem colocado qualquer leitura política da realidade em um estado febril, marcado pela ação e pela contradição. O que soa banal se torna precioso, e o que era tesouro desaparece da memória sem deixar traço, em segundos. É sólido, e se desmancha no ar.

Mas talvez a ansiedade seja um preço menor a pagar diante da experiência de uma realidade em desordem, já avisava Diderot: “Tome cuidado com aquele que fala em colocar as coisas em ordem. Isso sempre significa controlar pessoas”. Melhor viver com “gangnam style” do que sem ele. Mesmo que sob uma forte dose de ansiolíticos.

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[Marcelo Rezende é curador dos projetos “Ver o Tibet” (Rio, 2010) e “Cinema Veloz e Volante” (Salvador, 2012-13), entre outros trabalhos]