Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

NSA coleta dados, mas não consegue analisá-los

William Binney, criador de alguns dos códigos de computador usados pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos para espionar o tráfego de internet ao redor do mundo, fez uma afirmação inusitada na conferência sobre privacidade no mundo digital que ocorreu em setembro em Lausanne, na Suíça. Segundo ele, a agência tem tanta informação que não consegue entendê-la. “Eles estão se tornando disfuncionais de tanto acumular dados”, disse Binney aos presentes na conferência.

A agência está se afogando em dados inúteis, que prejudicam sua capacidade de realizar um monitoramento apropriado, alega Binney, que chegou a um cargo civil equivalente a general durante seus 31 anos de carreira na NSA (sigla da agência em inglês) antes de se aposentar, em 2001. Analistas estão tão sobrecarregados com informações que não podem fazer seu trabalho direito, e a enorme quantidade de dados cria uma tentação irresistível de usá-los de forma errada. O alerta dele recebeu muito menos atenção que as questões legais levantadas pelas declarações de Edward Snowden, ex-funcionário terceirizado da NSA, sobre a coleta de informações em massa da agência no mundo. Essas revelações deflagraram uma revisão das táticas agressivas de espionagem da NSA.

De fato, a NSA precisa de mais espaço para armazenar os dados que obtém – e novos registros de ligações telefônicas, dados sobre transferências de dinheiro e outras informações continuam chegando. Um novo centro de armazenamento que está sendo construído no estado americano de Utah vai, no futuro, ser capaz de guardar 100.000 vezes mais material impresso do que a Biblioteca do Congresso americano, uma das maiores do mundo.

Um “software inteligente”

Alguns dos documentos divulgados por Snowden revelam as preocupações dentro da NSA com o volume excessivo de dados. Um memorando interno de 2012 sobre o rastreamento de celulares estrangeiros disse que a atividade estava “excedendo nossa capacidade de absorver, processar e armazenar” dados. Em março de 2013, alguns analistas da NSA pediram permissão para coletar menos dados através de um programa chamado Muscular porque “o valor relativamente baixo da informação não justifica o volume considerável da coleta”, segundo um outro documento.

Em resposta às perguntas sobre as alegações de Binney, uma porta-voz da NSA diz que a agência não “está coletando tudo, mas precisamos, sim, de ferramentas para coletar informações de inimigos estrangeiros que desejam causar danos à nação e seus aliados”. Os programas de monitoramento atuais foram aprovados por “todos os três poderes do governo” e cada poder “tem função supervisora”, acrescentou. Num comunicado por meio de seu advogado, Snowden diz: “Quando você começa sua rotina de trabalho toda manhã mexendo numa pilha de sete bilhões de vidas inocentes, algumas coisas vão lhe escapar.” E acrescenta: “Estamos cegando as pessoas com dados que elas não precisam.”

Um painel a serviço da presidência dos EUA recomendou este mês que a agência interrompa sua coleta de registros de chamadas telefônicas dos americanos. O governo poderia atingir o mesmo objetivo consultando algumas operadoras de telefonia, concluiu o painel. O painel também sugeriu que seja criado um “software inteligente” que possa classificar os dados à medida que a informação seja coletada, em vez do sistema atual, em que “vastas quantidades de dados são coletadas e a classificação feita depois que eles são copiados” para os sistemas de bancos de dados. As autoridades estão examinando o relatório do painel.

Proteger a privacidade

Um outro grupo formado para examinar as práticas da NSA deve divulgar suas conclusões em 2014. Além disso, parlamentares americanos propuseram vários projetos de lei que alterariam a forma como a NSA coleta e usa os dados. Binney, que tem 70 anos, diz estar em geral pouco impressionado com o “burocrático” relatório do painel, embora acredite que “seria significativo” se a polêmica levasse à adoção da iniciativa do “software inteligente” e à criação de um grupo de supervisão tecnológica com total acesso “para monitorar os passos da NSA”. Binney vive de sua aposentadoria e faz aparições ocasionais na mídia para falar sobre seu trabalho na NSA.

A agência de espionagem tem defendido seus programas, que ela afirma serem essenciais na luta contra o terrorismo. Mas ter dados em excesso pode ser problemático, segundo Binney e um grupo de colegas que vêm expressando suas preocupações desde que perderam uma batalha interna, no fim dos anos 90, para criar ferramentas de monitoramento que protegessem a privacidade na internet. Na época, a agência lutava para passar de um mero serviço de monitoramento de transmissões de rádio e satélite à condição de uma agência de espionagem eficaz no nascente mundo digital.

Binney, que havia entrado na NSA em 1965 com um grupo de matemáticos contratados para lidar com o universo crescente de cifras e códigos, trabalhava com o chefe do centro de pesquisa num programa inovador de monitoramento de tráfego na internet. “Decidimos focar na comunidade terrorista conhecida, que existia principalmente fora do país”, diz Ed Loomis, que dirigia o centro de pesquisa. “Mas também tínhamos interesse em todas as comunicações que mantinham com qualquer um nos EUA.” Binney e Loomis acreditavam que o poder do novo sistema, que chamaram de ThinThread, deveria ser restrito para proteger a privacidade dos cidadãos. Binney projetou uma maneira de criptografar todos os dados coletados nos EUA, permitindo que analistas da agência decodificassem a informação só com um mandado do Tribunal de Vigilância de Inteligência Estrangeira, que supervisiona as atividades da NSA que afetam residentes dos EUA.

“Eles direcionaram minhas soluções”

O projeto nunca chegou a ser lançado, já que os advogados da NSA não quiseram relaxar uma proibição ao registro de comunicações nos EUA. Em vez disso, Loomis foi informado que a NSA financiaria um programa de vigilância chamado Trailblazer, criado por uma empresa externa. Transtornados com a decisão, Binney, Loomis e um outro funcionário da NSA, Kirk Wiebe, anunciaram planos de se aposentar em outubro de 2001. Binney chegou a reconsiderar após os atentados de 11 de setembro, mas acabou indo em frente ao tomar conhecimento dos novos planos para usar sua tecnologia de análise de dados na caçada a terroristas. Com uma grande diferença: as proteções à privacidade dos cidadãos contra intrusões ilegais foram eliminadas, diz ele.

Em 2002, os três funcionários aposentados da NSA solicitaram ao Departamento de Defesa dos EUA que investigasse se a suspensão do ThinThread e o financiamento do Trailblazer haviam sido feitos de forma adequada. Binney se recolheu à vida de aposentado. Mas o programa de vigilância da NSA começou a chamar mais atenção. Em 2006, um técnico da telefônica AT&T vazou documentos que mostravam que a empresa estava trabalhando com a NSA para vasculhar a internet com uma tecnologia semelhante ao sistema construído por Binney e Loomis. As críticas à agência engrossaram depois que os jornais The New York Times e Baltimore Sun publicaram artigos sobre o programa de espionagem.

Autoridades suspeitaram que os funcionários aposentados da NSA estivessem envolvidos no vazamento, segundo documentos do governo. Binney e seus dois colegas não foram acusados de nenhum crime, mas um empregado da NSA, Thomas Drake, foi processado pelo governo por violar a Lei de Espionagem dos EUA. As ações contra Drake irritaram Binney, que decidiu falar publicamente sobre suas preocupações. Em abril de 2012, num evento sobre espionagem digital em Nova York, Binney declarou: “Eu estava focado em ameaças estrangeiras.” […] “Infelizmente, depois de 11 de setembro eles direcionaram minhas soluções para este país e todos aqui.”

As recomendações do painel

Em agosto daquele ano, a diretora de cinema Laura Poitras lançou um documentário on-line de oito minutos sobre Binney. Ela o chamou de whistleblower, o termo em inglês para quem denuncia atividades ilegais numa organização, muitas vezes do governo. Após ver o filme, Snowden entregou a Poitras uma pilha de documentos não divulgados, diz ela. Alguns deles sustentavam os argumentos de Binney. Por exemplo, documentos detalhavam os dois programas de vigilância clandestinos da agência: a coleta em massa de registros de telefonemas e programas de análise de tráfego na internet. A NSA não contestou os documentos.

O governo de Barack Obama afirma que o programa de internet foi extinto em 2011, embora a coleta de registros telefônicos ainda esteja em curso. John C. Inglis, vice-diretor da NSA, disse a parlamentares em julho que a agência teve a aprovação da Justiça para analisar registros telefônicos coletados. O tipo de análise usada, feita para um suposto terrorista, poderia autorizar a NSA a vasculhar os registros de pelo menos um milhão de pessoas.

Binney diz que exortou os parlamentares e um conselho de supervisão a limitar a coleta de dados e criar uma equipe de auditoria técnica para verificar alegações sobre a coleta e uso de informação pela NSA. O painel presidencial sugeriu acabar de vez com a coleta indiscriminada de dados telefônicos. Em vez disso, as telefônicas deveriam armazenar os registros e entregá-los somente com uma ordem judicial, afirma o painel. Obama vai decidir nas próximas semanas se as recomendações do painel serão adotadas.

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Julia Angwin, do Wall Street Journal, de Lausanne (Suíça)