Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A crônica da aniquilação do saber

Os livros, os bons livros, podem proporcionar grandes viagens. O leitor mergulha num mar de letras e palavras e pode sair do outro lado do mundo. Um mundo real, fantástico ou igualzinho ao da esquina da sua casa. O historiador francês Lucien Polastron nos arrasta para uma viagem no tempo e no espaço através da história das bibliotecas, ou melhor, da sua destruição. Ele nos coloca face a face com a maldade humana. Ódio, vingança, inveja, preconceito e vaidade são ingredientes da literatura, e vemos aqui como elementos da história dos livros. Nessa história há de tudo um pouco. Incêndios – muitos –, inundações – várias – mas, sobretudo, um desejo de aniquilar, de fazer desaparecer a arte, a História, a ficção e a memória. Como se as bibliotecas nunca houvessem existido, como se seus livros não tivessem sido escritos, nem lidos. Mas eis que surgem obras como “Livros em chamas” que não deixam apagar da memória essas bibliotecas extraordinárias para que a história não se repita.

Inventário minucioso e ambicioso

Neil Gaiman, escritor inglês, lembra que “bibliotecas têm a ver com liberdade. A liberdade de ler, a liberdade de ideias, a liberdade de comunicação.” Quando acompanhamos o roteiro de Polastron pela história da destruição sem fim das bibliotecas isso faz mais sentido ainda. O autor mesmo responde à pergunta central de sua obra. Por quê o desejo de destruí-las? “Porque um povo instruído não pode ser controlado”. E isso une persas na Antiguidade, legistas na China Antiga, inquisidores na Europa, conquistadores do Novo Mundo, nazistas na Alemanha e talibãs no Afeganistão. Este inventário minucioso e ambicioso traz em suas páginas a indignação e a revolta de seu autor. Como quando afirma que parte da história do Afeganistão jamais poderá ser escrita, ou quando lembra que o líder Pol Pot declarou guerra ao papel no Camboja queimando, em 1976, o acervo da Biblioteca Nacional e suprimindo os documentos de identidade. O livro, ao longo de séculos, foi visto como um inimigo mortal e facilmente reconhecível. Quando na verdade, como salienta Polastron, “ele é o duplo do homem, queimá-lo equivale a matá-lo.”

Esta pesquisa mostra também que, se de um lado houve o desejo contínuo de exterminar os livros, de outro o desejo de guardar não foi menor. É o caso do primeiro historiador dos mongóis, Rashid al-Din que, antes de ser executado em 1318, colocou em sua sepultura alguns manuscritos raros. Quando estes foram desenterrados em bom estado e legíveis, não apenas se encontrou um “tesouro”, como se descobriu uma nova maneira de conservar as obras.

Dentro do universo de bibliotecas é inevitável pensar na de Alexandria e em sua existência real ou não. Para o pesquisador “nunca uma construção, de que não se conhece o local nem o aspecto, fez rolar tanta tinta sábia e nem provocou fantasias de pessoas sérias.” Vale lembrar que biblioteca vem do grego biblion, rolo de papiro. A biblioteca como conceito nasceu e ganhou esse nome em Alexandria.

Não resta dúvida que este livro já é uma referência no assunto, por sua bibliografia vastíssima, pelo cuidado das notas, pela cronologia das destruições, e principalmente, pela amplidão de sua pesquisa da Alexandria à Bósnia, do papiro ao livro digital. É obra fundamental para quem quer conhecer a trajetória das bibliotecas ao longo de séculos. Polastron tem um estilo pessoal e crítico, mas não o talento literário de seu colega de ofício e tema, o historiador Robert Darnton, cujas obras lembram romances pelo prazer da leitura. E na edição brasileira há alguns erros de tradução e revisão, que não chegam a comprometer.

Coesão social

O historiador se pergunta o que, em países com tantas privações como é o caso de Botsuana ou de Ruanda, pode o livro fazer em benefício da população? “A resposta evidentemente é: tudo – do sonho individual à coesão social. Por isso as bibliotecas são as primeiras a sofrer nos golpes de Estado”. Todos os caminhos levam à potência das bibliotecas. Uma força transformadora em pleno século XXI.

Lançado na França em 2004, nos perguntamos por que o livro demorou tanto a ser traduzido no Brasil. Se por um lado ele chega tarde, por outro pode ser uma obra alvissareira, uma vez que a leitura e as bibliotecas vêm se tornando, pouco a pouco, uma questão nacional.

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Isabel Travancas é professora adjunta da Escola de Comunicação da UFRJ