Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A mídia e a arte de julgar

Foi-se o tempo em que se produzia uma TV de qualidade no Brasil. Isso se reflete por exemplo nos programas jornalísticos. Nunca se banalizou tanto a notícia. E, hoje, o que mais chama a atenção é a violência. Ou melhor dizendo, quem chama a atenção de quem, sobre o quê? A mídia insiste em mostrar a ‘guerra de todos contra todos’ como o único cenário da vida, ou pelo menos aquele que mereceria maior destaque, mas as pessoas se casam, têm filhos, sorriem, produzem coisas boas, estudam, trabalham e inovam. Escrevo para perguntar e refletir sobre os programas policiais que são exibidos à tarde: a quem interessa mostrar o óbvio da violência?

Quase não dá para acreditar no ponto a que chegamos em matéria de telejornais. Simplesmente os canais de televisão mostram a face mais crua da violência, com a enorme diferença de que a barbárie é um fenômeno auto-explícito e os produtos desses telejornais, frutos da manipulação de imagens, repetidas exaustivamente, e da performance dos apresentadores: ‘Assaltante mantém moradora refém’; ‘Coloca na tela pra mim de novo o caso daquele estuprador da zona norte!’ Não bastassem esses diálogos repetitivos e maniqueístas, a mídia, representada por esses programas, tem se arvorado no direito de julgar as pessoas e mesmo de execrá-las, como senão existissem garantias legais protegendo toda e qualquer pessoa.

A notícia virou show. E de que lugar falam os apresentadores? Com que direito eles se expressam assim? Será que precisamos dessas notícias, colocadas de uma maneira totalmente descuidada, subvertendo o nosso olhar e nossa capacidade de discernimento? Será que precisamos dessa avalanche de fatos lamentáveis mostrados na televisão? Os âncoras desses telejornais policiais que invadem nossas tardes todos os dias se parecem com velhos camaradas dizendo o que queremos ouvir: ‘A barbárie está em toda parte’. Mas, nem sempre o velho camarada tem razão…

Perturbação e desesperança

De alguma forma eles são nossos interlocutores e a gente se anestesia ainda mais diante dessa televisão que só se preocupa com os detalhes e que prefere ficar na superficialidade. Ou seja, ela se detém diante do fato nu e cru e tudo fica por isso mesmo. Sabemos que existem ligações mais complexas entre os acontecimentos.

Esses programas também criaram um fato novo: colocaram em cena o trabalho diário da polícia mostrando a nós toda a adrenalina que a profissão muitas vezes exige. Os policiais deixaram de ser heróis sem rosto, e nessa caçada pela audiência eu me pergunto se precisamos da repetição. Porque essa é a característica mais marcante da televisão nesses tempos de vale-tudo. Não só repetir a todo momento que o mundo está mais violento, como, também, fazer disso a condição para que, em seguida, no ponto de maior audiência, a propaganda venda os seus produtos sem fazer mal a ninguém. Nossa passividade é aliviada e garantida pelo controle remoto. A violência já tem lugar cativo em nossas salas.

Acredito que a repetição da violência, pura e simples, é também violenta. Ela nos faz achar que o mundo não tem mesmo jeito, engrossando o coro dos descontentes: ‘É, a violência está demais!’, ‘A coisa tá feia!’ Dar um jeito no mundo não é coisa só para especialistas. Você pode ser cidadão da cidade do mundo. Ou você pode ser cidadão da sua cidade, do Brasil.

Quando a mídia televisiva nivela por baixo toda criatividade fica comprometida. Inclusive a criatividade de participar como cidadão. O debate sobre a violência diz respeito a cada um de nós. O fácil de fazer, ou seja, uma televisão ruim, pouco reflexiva e sensacionalista, se torna difícil para quem vê. E o fácil de fazer, hoje, é fingir que todos nós desejamos mais violência nas telas de TV. Talvez exista em nós um instinto, uma necessidade de nos alimentar daquilo que mais nos apavora e causa asco. Freud tentou explicar… mas eu acredito que a violência como é mostrada na televisão perturba e causa desesperança nas pessoas.

Apocalipse a cada dia

Existe esse comportamento quase infantil de fazer valer a vontade de poucos, de muito poucos, de produzir uma televisão desvinculada da ética; da inventividade e do poder que a mídia tem de informar com veracidade e imparcialidade os fatos e também de entreter.

O óbvio da maldade é a face de uma sociedade desigual e é claro, não podemos fugir dos fantasmas que criamos. Contudo, sempre vai existir a vontade de achar o caminho certo. E como diria o filósofo Aristóteles, na Ética a Nicômaco, talvez o seu mais importante livro: o melhor caminho é o caminho da justa medida, o caminho do meio. Para o caso da televisão também vale o parâmetro. A violência parece sim, estar em toda parte, mas, como trazer a notícia? Essa é a questão.

Eu, como você, sempre que posso assisto à televisão. Se você, um outro alguém, não assiste, tudo bem, não se ofenda. Com certeza você também conhece uma pessoa que adora ver TV. Compartilho desse fascínio que ela exerce sobre milhões de pessoas, levando um mundo para dentro das nossas casas.

A televisão pode ser divertida, séria e informativa. Não precisa ser a anunciadora de um apocalipse a cada dia. Uma televisão feita por pessoas e para pessoas, é isso que nós todos queremos, sem esquecer, é claro, da qualidade. Que a arte de julgar seja para melhor.

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Professor de Filosofia