Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O fantasma silencioso da deontologia ‘conveniente’

Opressão, censura, ameaças, violência, morte. Muitos foram os artifícios historicamente usados contra o ofício jornalístico de tornar público aquilo que os poderosos queriam esconder da população a todo custo. Assim foi, por exemplo, com o Ato Institucional nº 5, ferramenta política criada e aplicada pela ditadura militar brasileira que passou a ‘nortear’ os rumos do que era ou não notícia, do que poderia ou não ser divulgado. É o chamado jornalismo deontológico, que é feito sob regras claras e bem definidas por alguma esfera de poder, seja ela de qualquer natureza.

Durante muito tempo, jornais e jornalistas que ousassem atentar às leis do AI-5 e a este deontologismo imposto pelo poder eram caçados como animais; como vírus que buscam desestabilizar a harmonia física de um grande organismo vivo. Assim se foram Vladimir Herzog e tantos outros corajosos e destemidos jornalistas que nada viam além de si do que escrever sobre a verdade. Falar a verdade, nada mais que a verdade, sob quaisquer circunstâncias – a isso poderíamos denominar a verdadeira ética jornalística.

Filosoficamente, a palavra ‘ética’ tem como significado ‘aquilo o que é bom para o indivíduo e para a sociedade’. ‘E’, não ‘ou’, à sociedade; não há possibilidade de ser ‘um ou outro’, mas impreterivelmente ambas as coisas. Ou seja, a verdadeira essência da ética, jornalística ou não, está diretamente ligada ao coletivo, jamais apenas a uma pessoa ou a um grupo de pessoas. Entretanto, parece que o velho fantasma da ‘ética deontológica’ do jornalismo ainda vive, mesmo com a redemocratização de nosso país e a conseqüente morte do AI-5 e de outras ameaças.

Mudança sem discussões

Mas há um grande e perverso diferencial. A deontologia de hoje é conivente; é aceita como algo ‘comum’ por um grupo de jornalistas. Não há um claro e evidente regime de opressão em nossa sociedade, mas algo que ‘está em toda parte e em lugar algum’; um sistema político que se forjou à beira da democracia e da Constituição de 1988, que as consomem dia-a-dia, tal qual um parasita: silencioso, voraz e mortal.

Posso citar em detalhes um exemplo. Tenho propriedade de falar sobre este caso já que ele aconteceu comigo, enquanto ‘ingênuo, tolo e utópico’ estudante de Jornalismo que ‘ainda’ acredita na ética essencial desta profissão, que mais encaro como uma ‘missão’ de vida. Na manhã do dia 27 de julho de 2008, em um domingo ensolarado e quente, fui de ônibus do meu bairro até o Terminal 1, no centro da cidade, a fim de fazer integração entre as linhas de ônibus e me dirigir até a Ponta Negra.

Ao contrário de muitos, eu não fazia o percurso a passeio, rumo aos belíssimos balneários da orla do Rio Negro, mas sim, para participar de algo que muitos jornalistas profissionais não têm estômago, tempo, vocação ou fé para fazer: jornalismo comunitário. A velha história de levar as pessoas – muitas delas excluídas pelos grandes jornais, a não ser em casos de crimes violentos – a pensar sobre sua participação social na democracia tupiniquim.

Aconteceu, entretanto, que as linhas que vão rumo à Ponta Negra simplesmente haviam deixado de fazer integração no Terminal 1 aos domingos e feriados. Algo deveras esquisito, se levarmos em conta o fluxo de pessoas que vão até o local nesses dias. Entretanto, a mudança imposta sem discussões pelo Instituto Municipal de Transportes Urbanos (IMTU) era até então desconhecida pela grande massa, o que podia facilmente ser comprovado pela quantidade de gente que se espremia em intermináveis filas indianas.

A espera inútil

Revoltado com a situação, decidi entrevistar usuários do transporte coletivo e alguns fiscais do Terminal. Enquanto o primeiro grupo se mostrava cético com a mudança, mesmo diante da notável demora dos ônibus, o segundo grupo se permitia ao silêncio e se limitava a repassar as informações somente quando solicitadas. Ou seja, o fiscal, que deveria obrigatoriamente informar a população sobre a mudança, se mostrava uma figura irrelevante e inútil à população, mesmo sendo um funcionário público.

Mesmo estando, até aquele momento, de certo modo ligado à Prefeitura de Manaus – eu tinha uma modesta bolsa de estágio na Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma), onde atuava como repórter –, não pensei duas vezes em procurar soluções para o fato. Para isso, utilizei-me da única ferramenta de que dispunha naquele instante: o bom e velho jornalismo de ‘utilidade pública’, hoje um gênero um tanto esquecido e fora de moda nas grandes redações e nas ‘fábricas’ de notícias espetaculares.

Assim se fez. Redigi a matéria e procurei os responsáveis – no caso, o presidente do IMTU, Waldir Frazão. Entretanto, como não consegui localizá-lo pelo telefone celular (era domingo), concluí a matéria e enviei ao jornal A Crítica sob regime de free lance, na esperança de conseguir contato com ele no dia seguinte e fazer uma nova matéria com os devidos esclarecimentos. Importante: eu poderia ter ‘segurado’ a matéria, já que não abordava ‘os dois lados’, mas o fiz para que a mudança (eu não abordei na matéria se era boa ou não) fosse tornada pública e tão logo evitar a espera inútil de pessoas nos demais dias que viriam.

Debates empobrecidos

No dia 28 de julho, segunda-feira seguinte, a matéria foi publicada no caderno de ‘Cidades’ sob o título: ‘Passageiros são surpreendidos’. Ainda na manhã do mesmo dia, recebi uma irritada ligação do presidente do IMTU, Waldir Frazão, que, para minha surpresa, disse (depois de uma série de broncas, nada de ofensivo) que ‘eu não poderia ter feito o que fiz, já que estávamos do mesmo lado’. Ou seja, de maneira sutil, ele deu a dica: ‘Sei que você trabalha na Prefeitura.’

Poucos minutos depois, meu ex-chefe, o jornalista Yusseff Abrahim, assessor de comunicação da Semma, recebeu um telefonema de ‘membros’ da Secretaria Municipal de Comunicação Social (Semcom), a fim de ter certeza de que eu realmente trabalhava na pasta de Meio Ambiente. O resultado disso não foi nenhuma surpresa: a partir de ‘ordens superiores’, fui desligado imediatamente sob alegação de ‘crime de fogo amigo’.

Logo fui alvo de comentários de profissionais da Semcom, que analisaram o fato sob certo prisma ‘ético’ e trataram de me julgar como anti-profissional e como uma pessoa de índole ‘duvidosa’. Isso, de certo modo, me fez e ainda me faz rir. Afinal de contas, para quem escrevem os jornalistas? Para o prefeito, que, dizem, nem sabia da tal mudança? Não sei mesmo. O que sei, e isso ficou bem claro diante dos debates empobrecidos deflagrados a partir do meu caso de má conduta, é que a ética destes profissionais é um tanto volátil; ela se adapta às circunstâncias e muda de acordo com suas necessidades.

Dias de ‘caça às bruxas’

A verdadeira essência da ética jornalística está e sempre deve estar ligada à população, que padece de voz, de representação e, em muitas ocasiões, de dignidade. A minha ética, sem falso testemunho ou demagogia – e provei isso quando me permiti fazer uma matéria assinada e ‘negativa’ à Prefeitura, ou seja, saltei no abismo de olhos abertos –, não está sujeita às condições políticas, de mercado, do clima, do sol, da chuva, do vento, do estado de espírito ou quaisquer outras desculpas esfarrapadas usadas por jornalistas covardes que se escondem atrás delas em troca de dinheiro. A minha ética é ‘cega’, imutável e, por assim dizer, irresponsável.

Não me arrependo. E mesmo com os breves e rápidos dias de perseguição, posso me orgulhar da vitória obtida e continuar de consciência limpa. Na terça-feira seguinte (29/07), a resposta do IMTU, intitulada ‘IMTU decide voltar atrás’ mostrou que eu estava certo. A mudança, caso tivesse sido pensada, planejada e devidamente calculada para beneficiar a população – como tentaram nos fazer pensar na resposta publicada –, não seria desfeita assim tão fácil. Se fosse como o IMTU afirmava, no mínimo haveria uma justificativa plausível para o caso e a medida teria continuado, coisa que não aconteceu.

O jornalismo de hoje, seja nas redações de jornais ou nos corredores da Semcom (certamente, existem exceções!), é feito por corruptos travestidos de profissionais de imprensa, que se vendem por muito, muito pouco; se deixam prostituir por migalhas, por algumas unidades de papel-moeda que se assemelham a grande coisa; o chamado ‘ouro de tolo’.

A ética de verdade não está e nunca estará à venda. Da mesma forma, eu não estou à venda. O que fiz, embora mínimo e pequeno diante de tantas adversidades impostas à sociedade, garantiu uma pequena vitória para a população, que tanto necessita das linhas de ônibus nesta cidade e em tantas outras. E vou seguir neste caminho a todo custo, mesmo que isso custe minha ‘estabilidade’ e me cause dias de ‘caça às bruxas’.

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Estudante do 6º período de Jornalismo, Manaus, AM