Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Privatização da informação e o fim do espaço público virtual

“Estar isolado é sempre afirmar-se numericamente; quando alguém se afirma como um, isso é isolamento. Tenho certeza de que todos os amigos da associação concordam comigo nisso, mesmo quando são incapazes de ver que o mesmo isolamento se dá quando centenas querem se afirmar como nada além de centenas.” (Soren Kierkegaard)

A participação de Pablo Capilé e Bruno Torturra, responsáveis pelo Fora do Eixo e pela Mídia Ninja, no Roda Viva da TV Cultura (ver aqui) levantou uma discussão acirrada entre jornalistas. Uma das coisas que se disse com mais insistência nesse debate é que o tipo de prática Ninja (Narrativas Independentes Jornalismo e Ação) é o futuro do jornalismo. É bem possível que seja verdade. Se for, não é um futuro promissor. Não há nada de muito novo no que a Mídia Ninja faz. Nem de bom.

A internet mudou o cenário em que se dá o jornalismo. A interligação em rede dos computadores não apenas acelerou ou facilitou o processo de captação e transmissão de informação. Ela provocou uma mudança estrutural na forma de dar significado ao mundo que caracteriza o jornalismo, isto é, no jornalismo como modelo formal de narrativa. A internet subverteu a característica formal essencial do jornalismo: a periodicidade. A diferença da internet em relação aos meios tradicionais não é a rapidez. O rádio e, mais tarde, a TV fazem coberturas ao vivo há décadas. Não dá para ser mais rápido do que isso. Um jogo de futebol, por exemplo, pode ser acompanhado ao vivo pela TV ou pelo rádio. Depois de terminado, porém, quem quiser saber o resultado do jogo através de um meio de comunicação tradicional tem que esperar o horário de um jornal de rádio ou TV, ou o jornal de papel do dia seguinte.

A periodicidade dá aos meios tradicionais o arcabouço lógico de sua narrativa. Um jornal de papel lido de manhã constituía, quando os meios tradicionais dominavam, um relato do dia anterior compartilhado por todos os leitores. O que estava no jornal era o repertório de informações sobre a vida comum de interesse mais amplo possível. Em torno desse repertório os cidadãos travavam sua conversação mais geral. Por mais que diretores de redação e donos de jornais sonhem sempre com chamadas exclusivas em suas capas, é quando os principais jornais do país exibem primeiras páginas praticamente idênticas que a tarefa do jornalismo se cumpre melhor: a narrativa do que foi o dia anterior pode ser partilhada por todos os leitores de jornal, não importa qual título específico cada leitor leia. Dependendo das opiniões e inclinações de cada leitor ele poderá gostar ou não do que aconteceu, se alegrar ou se irritar com os fatos, mas estará falando dos mesmos temas que seus iguais.

Grupos de interesse

Essa narrativa partilhada construiu ao longo dos séculos 19 e 20 uma espécie de espaço público virtual nas sociedades de massa. Uma espécie de praça pública possível. A leitura do jornal, a escuta das notícias pelo rádio de manhã ou na TV à noite podia ser individual, mas todos ouviam a mesma coisa a cada período. A internet destruiu esse espaço público virtual. Com ela, pode-se ter acesso ao resultado do jogo de futebol que acabou de terminar, ou do que terminou na semana passada, dois anos atrás… Acesso à informação, em qualquer lugar e a qualquer hora, foi a mudança no jornalismo instaurada pela internet. Qualquer informação, na rede, é contemporânea de qualquer outra. Assim, cada indivíduo tem acesso à informação que quiser, à hora que quiser.

Como o meio é muito barato – não é mais necessário imprimir um jornal ou ter uma antena poderosa para emissão de ondas de rádio e TV –, o acesso à informação foi extremamente facilitado pela internet tanto para quem a recebe como para quem a emite. Isso permite que, em tese, todo mundo passe a ser emissor de informação. O espaço púbico virtual dos meios tradicionais cedeu lugar à privatização da informação. Cada um fala e ouve o que quer, sem filtro de nenhum tipo. O resultado é ruído, burburinho, não uma conversa.

A distinção entre público e privado, aqui, não se refere à forma de propriedade dos meios de comunicação. Meios tradicionais podem ser comerciais, financiados por taxa exclusiva (como a BBC) ou estatais. Nada impede que as novas mídias se organizem sob as mesmas formas. Não é isso o que mais importa.

As novas mídias são privadas no sentido de que a informação é produzida e veiculada de forma unilateral por quem a gera, e procurada e recebida privadamente por quem a quer. Trata-se da diferença entre público e privado no sentido em que um pub inglês é público, daí seu nome (pub é abreviação de public). Um pub é um bar em que qualquer pessoa pode entrar e tomar sua cerveja. Diferente do bar de um clube, onde só os sócios podem beber.

A internet inaugura uma espécie de varejo da informação. A relação do usuário da informação não é mais a de uma pessoa que bebe num bar público, onde se toma a cerveja forçosamente cercado por, digamos, torcedores de outro time, eleitores de outro partido, fãs de outro artista. A internet permite que se obtenha a informação como quem compra cerveja no supermercado e a toma em casa sozinho ou só com amigos que escolher. O que se suprime é o espaço em que convivem, por meio da mesma informação, os diferentes.

No espaço público virtual definido pelos meios de comunicação tradicionais, os jornalistas são uma categoria profissional a serviço dessa praça pública virtual. Seu controle sobre ela é, idealmente, de caráter técnico. Como seu trabalho depende de audiência, o controle que têm sobre a praça é compartilhado com os leitores.

A internet tornou possível o controle da narrativa aparentemente jornalística a quem, nos meios tradicionais, é notícia – e, portanto, alvo de escrutínio. Políticos, empresários, líderes de grupos de interesse têm, hoje, na internet, a chance de aparecer em público exclusivamente em seus próprios termos, sem ter que descer à praça pública virtual do jornalismo tradicional. Isso é privatização do que antes era público.

Uma rede de supermercados, por exemplo, pode ocupar um parque público em São Paulo, organizar uma maratona para amadores, cobrir essa maratona e divulgá-la pelo Youtube, Facebook ou qualquer outra forma na internet. A Mídia Ninja pode aderir a um protesto ou convocar um, cobri-lo e divulgá-lo. Nos dois casos, pode parecer jornalismo. Não é. É propaganda. Não à toa eles se chamam Mídia Ninja e não Imprensa Ninja ou qualquer sucedâneo. Mídia é o termo com o qual os profissionais da publicidade e seus clientes se referem aos meios de comunicação. Tanto o supermercado quanto o grupo de interesse ou o partido político podem parecer estar interessados em divulgar informações. Não estão. Estão interessados em obter algo, ainda que indiretamente: dinheiro, no caso do supermercado; votos, prestígio, apoio, no caso de partidos políticos ou grupos de interesse.

Narradores oniscientes

Ocupar a praça, seja para um protesto, uma campanha de vendas de um novo produto ou para um comício, é privatizar o espaço público no interesse do grupo comercial, político ou outro, que ocupa a praça em massa. A Mídia Ninja submete-se a essa lógica. Sua cobertura, como a que foi feita nas manifestações de junho, é pontual e definida pelo próprio evento a ser narrado. Mídia Ninja é um carro de som instalado numa praça tomada por um ente privado qualquer, não um rádio.

O problema é que a democracia é a praça aberta a todos para conversar. A democracia não é um meio, não é um método ou uma etapa no caminho de algo, seja lá o que for, que acabe por tornar a democracia dispensável. Ela é o fim porque é a única possibilidade de os diferentes conviverem sem a obrigatoriedade de deixarem de ser diferentes. A democracia é essa conversação eterna que, numa medida possível, os meios de comunicação tradicionais tornaram possível por dois séculos. Numa sociedade moderna fragmentada, que não tem uma visão de mundo – ou uma metanarrativa compartilhada que abranja a todos –, a democracia, como conversação permanente entre os diferentes, exige praças, reais ou virtuais, abertas e livres, não ocupadas ou privatizadas por grupos.

A democracia não é a massa nas ruas, por mais numerosa que ela seja. A democracia são os cidadãos conversando para sempre, porque não há narradores de terceira pessoa oniscientes. Os meios de comunicação tradicionais facilitavam isso. A internet dificulta. Não é a toa que a Mídia Ninja causou esse debate todo ao aparecer no Roda Viva, um dos formatos mais imutáveis de um representante de um meio de comunicação tradicional ainda razoavelmente sólido. A Mídia Ninja virou alvo de elogios e também de ataques pesados depois de aparecer na TV. Porque a praça não é deles.

******

Marcelo Musa Cavallari é jornalista.