Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sem heróis, real função é ignorada

A necessidade humana de criar heróis e vilões já foi exaustivamente explorada pela psicologia e pela filosofia. No jornalismo, há certo sadismo em permear o noticiário com maniqueísmos que não fazem a imprensa melhor, mas aplaca a vontade do público em assistir um bom duelo.

Os manuais de boa conduta e o juízo nos recomendam resistir a essa tentação, mas as pisamos nas mesmas armadilhas de sempre. Foi assim com a série de manifestações que tomaram as ruas no último mês de junho em que as pessoas, sem destacadas lideranças e muitas por si mesmo, cobravam uma profusão de direitos.

O vício por mocinhos e bandidos trouxe brigas para dentro das manifestações, que pretendiam ser pacíficas. Membros ou simpatizantes de partidos que estiveram nos protestos desde o início foram hostilizados ou expulsos de forma violenta por quem negava o caráter político das passeatas. Grupos antes coesos sucumbiram a finas divergências ideológicas ou visões de mundo.

Com o arrefecimento das manifestações, o campo de disputa migrou das ruas para as redes sociais. O grupo Ninja (sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) e seus métodos passaram a servir de cabo de guerra. Lembro que li interessadíssimo a convocatória do jornalista Bruno Torturra no blog Casca de Besouro, no dia 5 de junho de 2013. Na ocasião, ele criticou a sequência de demissões coletivas nos grandes jornais e contou ao mundo do que se tratava o Ninja.

“Um grupo de comunicação amplo e descentralizado, a fim de explorar as possibilidades de cobertura, discussão, repercussão, remuneração e da radical liberdade de expressão que a rede oferece. Streaming, impressos, blogs, fotos, debates públicos sem o fantasma do lucro e do crescimento comercial como condições primordiais para o trabalho. Por enquanto, nosso melhor investimento é entender a frequente e saudável relação inversa entre saldo bancário e propósito”, dizia o texto.

Influência benigna

Possivelmente mais um motivo de orgulho da minha geração, até então meio apática, esse exemplo de empreendedorismo a toda prova é capaz de revelar algumas experiências interessantes. O contexto também lhe é favorável: as passeatas que talvez mereçam uma foto colorida nos livros de história.

A ideia dos ninjas, como os integrantes do grupo passaram a ser chamados, é inegavelmente boa. Porém, mais uma vez caímos na armadilha do maniqueísmo e o grupo ganhou uma aura de heroísmo inconteste. Talvez seja mesmo muito difícil afirmar o oposto de jovens que se dispõem a sofrer com a ação truculenta da polícia, pouco afeita à intenções do grupo, para documentar eventos da magnitude de um protesto com 50 ou 100 mil pessoas.

Entretanto, tornou-se impossível criticar o modus operandi dos ninjas sem sofrer represálias. Principalmente depois da entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura, na terça-feira (5/8, ver aqui), com Torturra e Pablo Capilé, fundador do coletivo Fora do Eixo, de onde nasceu o Ninja. Embora não se refletisse ao vivo, notícias, blogs e redes sociais passaram a realçar com força máxima a oposição entre “grande mídia” versus “mídia ninja”.

Os motivos políticos dessa disputa por espaço, amplamente puxada pelos simpatizantes dos ninjas – uma vez que os líderes de audiência não precisam brigar para aparecer –, tem aparecido aos poucos e não é o caso de discuti-los agora. O jogo de mocinho e bandido não é produtivo para a sociedade. É um jogo para quem quer bater e correr, mas não se sustenta minimamente.

Dizer que a “grande mídia” foi, ou vai ser, desbancada pelos ninjas é torcer pelo Anderson Silva na Fórmula 1 porque está cansado de ver o Rubinho Barrichello perder corridas. A insatisfação com a imprensa é antiga e recorrente. Mas os ninjas, definitivamente, não vão substituí-la. A briga é artificial e sintoma do heroísmo que passou a travestir uma novidade que tem o mérito de ser legal e empolgante.

Com a possibilidade de transmissões ao vivo, full time, e com baixo custo, o que grupo fez até agora foi trazer uma visão de dentro dos movimentos. Munidos de telefones celulares, os ninjas trouxeram cenas que dificilmente seriam captadas pela parafernália de uma equipe de telejornal. A intenção tem a capacidade de se contrapor ao discurso oficial e oficioso repercutido por grande parte da imprensa. Se o governo diz que não houve violência policial, as imagens mostram o contrário. Isso, porém, é fonte primária de informação. Está mais próximo de um WikiLeaks multimídia do que de um telejornal. Não se trata de jornalismo.

Em primeiro lugar porque, jornalismo, apesar de suas muitas definições, depende de edição. Seu usuário final não são outros jornalistas ou investigadores atrás de provas. Jornalismo é feito para leitores, telespectadores e ouvintes. É função do jornalista profissional selecionar e hierarquizar quais informações são relevantes para se construir uma narrativa. Ser questionado sobre a qualidade, ou veracidade, da informação que leva até seu público é uma responsabilidade que o profissional deve suportar. Mas trata-se de um ofício maior do que apertar um botão de “rec” e deixar a câmera ligada.

Considerando que ser público não é uma profissão, a missão do jornalista é levar ao cidadão, pelo menos, um resumo ou um apontamento sobre fatos pelos quais ele poderá se inteirar em seu tempo livre. Análise e opinião também entram nessa conta, mas são um bônus. Calcule que uma passeata de cinco horas tenha sido registrada por três câmeras – número muito baixo para a produção em larga escala dos ninjas. São 15 horas de material para ser assistido pelo público. Levando em consideração só o tempo disponível, é possível manter-se suficientemente informado por menos.

O registro de imagens sob um único ponto também está longe de ser jornalismo. Com alguma edição artística pode vir a ser neorrealismo italiano. Se fixada em vez de estar na mão de alguém, a câmera se aproxima mais dos propósitos já utilizados há muito tempo pelo poder público e empresas de segurança: vigilância.

Não ser jornalismo, porém, não impede que as pessoas que acessam ao conteúdo na rede o encarem como tal. Em entrevista publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos, o pesquisador da Universidade Federal do Espírito Santo, Fábio Malini, reconhece que há uma tendência a querer enquadrar essa forma de cobertura colaborativa como prática jornalística.

Isso não impede, porém, a Mídia Ninja de produzir efeitos na mídia tradicional. É sempre saudável que a “grande imprensa” tenha motivos para melhorar sua cobertura. Um bom exemplo disso é o uso das imagens captadas pelos ninjas em reportagens da Rede Globo.

Caminho óbvio

Se o trabalho (não remunerado) dos ninjas fosse jornalismo, também estaria sujeito às críticas já feitas à grande mídia. A transmissão em streaming carrega consigo a discussão sobre os problemas causados no jornalismo em sua busca incessante por velocidade. Mais do que entender os fatos, os sites jornalísticos que têm como primeira preocupação o timing da notícia acabam, reiteradas vezes, por cometer erros graves ou a reproduzir o discurso alheio de forma acrítica.

Descrito pela professora Sylvia Moretzsohn (no livro Jornalismo em “tempo real”: o fetiche da velocidade), o fetiche da velocidade leva a erros desnecessários que poderiam ser evitados se repórteres tivessem mais tempo para cumprir suas pautas do que a necessidade de entregá-las ao leitor. Se esse fetiche é visível na cobertura de sites jornalísticos, ele é levado às ultimas consequências pelos ninjas. Com a intenção de transmitir tudo ao vivo, não há nenhum trabalho de contextualização e reflexão sobre imagens registradas por suas câmeras.

O efeito danoso dessa disputa artificial é a proliferação de torcedores e seus discursos inflamados, frutos de alguma irracionalidade própria dos duelos. São incapazes de perceber que, reconhecidas as limitações de cada um, a coexistência e a colaboração dos ninjas com o “velho jornalismo” é o caminho óbvio e mais interessante a ambos.

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Marcos de Vasconcellos, chefe de redação do site Consultor Jurídico